quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Memórias

Estava sentado em seu quarto, com as luzes apagadas, mexendo lentamente o gelo do copo com um dedo, sem perceber que a muito seu uísque barato tornara-se pura água num copo vazio. Relia o e-mail, ainda com os olhos vermelhos que denunciavam noites insônes, álcool, tabaco, e alguma tristeza. Sua palidez era quase doentia, e contrastava com as profundas olheiras acinzentadas que depositaram-se sobre seus castanhos olhos. Cabelos revoltos demonstravam o total desleixo com a aparência, enquanto os copos e talheres e garrafas e filtros de cigarros largados ao redor do monitor indicavam decadência. Fechou novamente o e-mail, e ignorou a foto que ilustrava dias melhores em seu monitor, levantando-se trôpego da cadeira e saindo do quarto, novamente ouvindo as palavras escritas ganharem eco em seus pensamentos. Passou pela sala, chutando as roupas largadas pelo chão junto a livros inacabados, cacos de cds e uma ou duas caixas de pizza. Algo correu pelo chão, subiu a parede e precipitou-se pela janela, um pequeno vulto, e ele imaginou se agora até os insetos o evitariam e o abandonariam. Agradeceu pelos insetos não digitarem e-mails, e chegou a cozinha, deparando-se com a pior parte do apartamento. Na pia, uma pilha de louça que clamava por limpeza, clamor este solenemente ignorado por ele. Caixas de comida congelada se espalhavam por cima dos talheres, garfos e copos que ali jaziam, e ele imaginou se deveria ou não acender a luz. Constatou que era melhor não.

Abriu a velha geladeira, e a lembrança novamente o assaltou, mas ele concentrou-se em seu objetivo: Mais gelo para seu uísque. Era tudo o que precisava. Retirou a cambuca de gelo, mas antes de fechar a porta do congelador, seu olhar percorreu o conteúdo das prateleiras. Maçãs passadas, leite vencido, duas garrafas de água pela metade, alguns condimentos estragados, e duas cervejas que ele comprara quando seus dias ainda possuíam algum colorido. Pegou uma delas, e bateu com força a porta do refrigerador antes de voltar para o quarto, tateando pelo apartamento deplorável.

Sentou-se em sua cadeira, e voltou a abrir o e-mail, pois encarar as duras palavras contidas nele era melhor do que ver aquele sorriso idiota estampado na própria cara que decorava a área de trabalho. Pegou a garrafa de uísque, derramou no copo até que este estivesse quase cheio (ou seria menos vazio?) e acrescentou duas pedras de gelo. Bebeu, e recolocando o copo sobre o móvel, empurrando o cinzeiro que transbordava guimbas, decidiu ler novamente. Talvez desta vez não doesse tanto.

Porém, uma voz (na verdade, Aquela voz) chamou seu nome, quase em um sussurro. Ia gritar, mas seu cérebro dominou seu instinto com a afirmação de que nada adiantaria clamar por socorro, já que ele não obteria nenhuma ajuda assim, e apenas se sentiria ainda mais ridículo. Então, limitou-se a girar lentamente a cadeira, enquanto um perfume (na verdade, Aquele perfume) invadia seus sentidos e o entorpecia. E ali estava ela, sentada em sua cama, com um sorriso estampado no rosto. Mas por algum motivo não era Aquele sorriso.

"Pronto, enlouqueci", pensou, enquanto encarava-a com o semblante impassível. Ficaram assim durante algum tempo, e então, como sua alucinação não desistia de atormentá-lo, desistiu ele, virando-se novamente para o computador. Selecionou algumas músicas, e deu play. Tornou a concentrar-se no texto a sua frente, mas o perfume ainda estava ali. Ouviu a respiração indignada, aquele leve suspirar que ela sempre dava antes de começar a brigar com ele, e ele sentiu a saudade arrebentar a represa que ele tentava em vão criar, e inundá-lo. Odiou-se, levou a mão ao copo e sorveu mais um gole de uísque.

- Vai mesmo continuar me ignorando?

Desta vez, o susto foi tamanho que ele derramou o uísque, amaldiçoando-se por isso. Virou-se, e ali estava ela, com sua tradicional saia preta de tecido leve que revelava as pernas que ele tanto admirava, sua camiseta preta colada ao corpo que revelava o busto generoso onde tantas vezes ele repousou, os cabelos negros emoldurando o rosto com as perfeitas imperfeições que ele admirara durante tantas noites insônes. E aquele rosto sorria para ele, e isso doía mais do que qualquer coisa poderia doer.

Lentamente, ela retirou as sandálias altas que usava, desafivelando-a uma a uma, ainda encarando-o, e estendeu ambas as pernas pela cama, olhando ao redor com um ar de reprovação. Ele percebeu que estava boquiaberto.

- Você está com aquela cara de idiota que eu consegui fotografar. Lembra?

Claro que ele lembrava. A foto tirada na praia, naquela viagem louca que eles fizeram.

- Quanto tempo você não arruma esta cama? Tá uma zona...
- Você está realmente aqui? Ou você é só uma alucinação provocada pela privação de sono e pelo excesso de álcool?

Ouviu sua voz e a desconheceu. Havia tempo que não falava coisa alguma.

- É claro que estou aqui! Onde mais estaria?
- Na sua casa. Vivendo a sua vida. Sem mim.
- Verdade, mas e você, consegue viver sem mim?
- Desde quando você se importa com isso?
- Desde sempre, idiota.
- Não, você não se importa.
- Me importo sim! E você está se destruindo. Por isso eu vim.

Ele balançou a cabeça, desacreditando do que estav acontecendo, e estendeu a mão, pegando um dos seus últimos cigarros, levando-o a boca, acendendo-o.

- É exatamente disso que estou falando. E você sabe que eu odeio cigarro.
- Tudo bem. Você não está aqui mesmo.
- Faz o seguinte? Apaga este cigarro, e senta aqui do meu lado. Vou te provar que estou aqui.

Ele apagou o cigarro, e cautelosamente, meio trêmulo, sentou-se ao lado dela. O perfume o atingiu, e ele não pôde evitar que as lágrimas brotassem.

- Calma... Calma...

A mão dela tocou a sua face, e ela o beijou gentilmente nos lábios. Depois o abraçou, colocando seu rosto contra os seios, e afagou os seus cabelos oleosos. Não sabe por quanto tempo ficou assim. Ela levantou-o, olhou-o nos olhos, e forçou-se a sorrir.

- Será que você não vê que eu estou aqui porque você me chamou? Não te abandonaria jamais!
- Mas você me abandonou!
- Não, eu não o abandonei. Nós apenas nos separamos. Foi isso.
- E não é a mesma coisa?
- Claro que não! Na verdade, acho que você não poderei abandoná-lo nunca, porque você simplesmente não vai deixar. Então, como tenho que ficar por aqui, vou começar dando um jeito em você.
- Han? Dando um jeito em mim?
- É. Você precisa arrumar esta casa. E precisa sair. E precisa rever seus amigos, eles o amam e sentem a sua falta. Precisa também conhecer gente nova, beber, viver a sua vida!
- Como é que é?! Você sempre foi contra isso tudo!!!! Você sempre reclamou dos meus amigos, você sempre detestava quando eu conhecia gente nova, e nem preciso te dizer que você simplesmente não confiava em mim!
- E mesmo assim, você não me esqueceu, e aqui estou eu.
- É. Mas... ainda não entendo.

Ele estava realmente confuso. Ou louco. Ou os dois. Ela o observava, sustentando um sorriso triste nos lábios. Passou as mãos pelos cabelos, e sentou-se com as pernas abertas, passando uma pelas costas dele e a outra por cima das suas pernas.

- Você não entendeu mesmo, não é? Você precisa sair desta fossa. Mas tudo isto foi provocado por mim, e eu me sinto na obrigação de ajudá-lo a sair desta. Antes que você faça alguma besteira.
- E quem é você, afinal de contas?

Perguntou ele, enquanto ela o puxava para si, beijando-o mais uma vez nos lábios. Ela não respondeu. Simplesmente o colocou na cama, deitando-o, e deitou-se junto a ele, beijando as lágrimas que ainda escorriam pelos seus olhos. Havia uma ternura que ele jamais vira no rosto dela, uma espécie de compreensão pelo que ele sentia que ela nunca demonstrara antes. Cobriu a ambos, enquanto o olhava nos olhos, e com o sorriso radiante que o fez se apaixonar, disse enquanto ele se deixava abater pelo sono que não vinha a dias.

- Eu sou a lembrança dela. Eu te fiz todo este mal. Mas você terá que conviver comigo, talvez pelo resto da sua vida, então deixe-me te ajudar. Eu tenho sido triste, mas quero que você faça de mim uma lembrança feliz...

Estas foram as últimas palavras que ele ouviu, antes de adormecer abraçado a sua lembrança.



Dedicado a todos que se lembram, mesmo sendo 'difícil viver carregando um cemitério na cabeça'.

7 comentários:

  1. Um conto extremamente humano!
    Uma fraqueza descrita com tanto abandono de vaidade que acaba se tornando força!
    Gosti muito! A vulnerabilidade do seu personagem tras a historia pra dentro de nós mesmos, nossas proprias lembranças e nossos proprios momentos de fraqueza!

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  2. Nossa...esse foi de tirar o fôlego...
    Isso me fez repensar, será mesmo que "felizes aqueles que esquecem"?

    Acho que não, felizes aqueles que mesmo sendo difícil carregar um cemitério na cabeça, faz dele a possibilidade de ressurreição para um ser melhor com uma vida melhor...

    Que todo novo começo seja bem vindo!Viva o novo e sejamos felizes!

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  3. Você tem o dom de me deixar sem palavras. Quem nunca sofreu por amor atire a primeira pedra. Como um sentimento pode ser tão paradoxal, constrói e destrói. "O amor da gente é como um grão, uma semente de ilusão, tem que morrer prá germinar". Nunca páre de escrever, amo o seu blog, talvez até mais que o meu!

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  4. Obrigado, mesmo, pelo apreço. E Natalia, digo o mesmo sobre o seu blog e as coisas que escreve por lá! Monstrinha, ainda tenho muito a aprender com você! Karine, esquecer pode até fazer de nós pessoas felizes, mas nunca aprenderemos nada!!!

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  5. ... semelhante e distante
    ps: clear ajuda com a oliosidade

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  6. O negócio é o seguinte: Recebi um 'Selo de qualidade' e escolhi o seu blog para receber também...
    Então aqui está! Copie-o, poste-o e indique outros blogs de sua alta preferência e que ainda não ganharam. É isto.

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  7. Amei a proposta do texto e a sua imagem final...Adormecer com a lembrança...foi, simplesmente, sem palavras.
    Agora, vai a crítica: !ue lembrancinha mais politicamente correta e chata! Queria uma lembrança mais boemia, mas sem-vergonha, uma lembrança mais despudorada! Quem é que diante de uma lembrança tão gostosa fica pensando em seguir em frente. A gente quer morrer ali, no momento em que ela acontece.
    Mas essas são só as minhas lembranças!!!
    kkkk
    Parabéns pelo texto!

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