quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Scoundrel Days

A vida de Sophia nunca fora uma maravilha, mas estava longe de ser o inferno que ela havia vivido nestas últimas 12 horas.
Encostada no balcão do pub, alheia a música alta, as pessoas que dançavam ao seu redor, aos gritos de homens comemorando alguma coisa na mesa próxima, as luzes que coloriam o ambiente, ela repassava cada um dos acontecimentos.

O dia havia começado bem, embora ela estivesse longe de casa e trabalhando. Participou de uma reunião com os gringos, para definir os valores do investimento total no novo negócio, e assim a sua comissão. Havia viajado na noite anterior, deixando Rodrigo, seu "namorido", sozinho em casa, coisa que ele sempre disse detestar. E havia se programado para chegar à noite, mas a reunião durou muito menos tempo do que ela esperava, e assim que terminou o almoço, estava indo para casa.

Mas a sua boa sorte havia terminado ali. Enquanto voltava, dirigindo seu sedã preto, passou por um imenso buraco na estrada que a obrigou a parar o carro, pois estourou seu pneu dianteiro. Debaixo de um calor de quarenta graus, no meio de uma auto-estrada, tentou em vão se entender com o macaco hidráulico, uma vez que seu telefone havia perdido completamente o sinal.
Para sua sorte, um jovem rapaz, ao vê-la, parou seu Jipe no acostamento e a ajudou. Bom, talvez fosse pedir muito que um homem não pedisse nada em troca após auxiliá-la, mas daí ao cara começar a dizer que finalmente a encontrara, e que ela era a pessoa escolhida havia uma grande diferença. Agradeceu, entregou a ele o seu cartão prometendo mentalmente a si mesma que iria trocar o número do celular, entrou no seu carro e seguiu sua viagem.

Ao chegar na cidade, parou seu carro por alguns instantes num sinal, e decidiu verificar se o seu telefone celular já estava funcionando. Péssima idéia. Dois pivetes, um deles armado, bateram em seu vidro, e com a arma apontada para ela, fizeram sinal para que ela entregasse a bolsa e o celular que segurava. Sem outra opção, sentindo-se completamente impotente e desamparada, com receio de ter uma morte banal, parada num sinal, entregou o que eles pediam. Um deles, ao vê-la após ela baixar vidro, fez menção de entrar no carro, mas o sinal abrira bem a tempo dela arrancar e dirigir o mais rápido que podia.

Ao estacionar o carro em seu prédio, ainda tremia, e por isso arranhou toda a lateral em uma das pilastras. Sentia-se um lixo, estava arrasada, mas o pior ainda estava por vir. Pegou as chaves e a carteira que sempre guardava no porta-luva, uma idéia que Rodrigo dera a ela e que na época ela achara idiota, mas que acabara acatando, e dirigiu-se ao elevador. Apertou o botão. Nada acontecera. Ouviu atônita enquanto seu porteiro lhe explicava que os elevadores estavam em manutenção, e que teria que subir até o sétimo andar pelas escadas. Tirou os sapatos de salto alto, e descalça, subiu todos os degraus, fazendo pequenas pausas entre os andares para tomar ar quando o fôlego lhe faltava.

Estava agora parada, em frente a sua porta, com a chave nas mãos, e os cabelos loiros a caírem sobre seu rosto cansado.
Pensou no quanto Rodrigo ficaria feliz por vê-la chegar antecipadamente, e imaginou-se nos braços dele, sentindo-se novamente segura, após todo este terrível dia. Não que fosse uma mulher frágil, longe disso, mas ele sempre passara a ela uma segurança que até então ela desconhecia.

Pôs a chave na fechadura e a girou, e escancarando-a, não pôde acreditar no que seus verdes olhos testemunhavam: Rodrigo copulava violentamente com uma mulher morena, em pleno sofá da sala. Ela estava de costas para ele, com os braços sobre o encosto, e os joelhos apoiados no assento, enquanto ele, atrás dela, apoiava uma das mãos em seus cabelos negros e a outra agarrava a sua cintura. Copulavam? Não, eles não copulavam. Estavam trepando. Pura e simplesmente.

Sem se dar ao trabalho de discutir, deu as costas para ambos, que pararam seu ato para observá-la; a mulher atônita, Rodrigo com a cara mais idiota que ela já vira um homem fazer. Não derramou lágrimas, não gritou, não esperneou, apenas se colocou a descer rapidamente todos os degraus que acabara de subir, e chegou à conclusão que enlouquecera. Ao passar pelo porteiro, este a olhou com pesar, e ela teve certeza absoluta que, se não enlouquecera antes, enlouqueceria em breve. Fez sinal para um táxi, no exato momento que Rodrigo aparecia, ainda sem camisa, no saguão do prédio. Entrou no táxi, sem mais olhar, e quando deu por si, estava sozinha num luxuoso quarto de hotel.

Espalhados pela cama, diversos vestidos e sapatos, ainda com a etiqueta das lojas, e diversas lingeries sensuais. Parado, com ar assustado, na porta do quarto, estava o pobre taxista que a acompanhara durante todo o caminho. Pegou duzentos reais na carteira e entregou ao homem, e antes que ele pudesse dizer algo, fechou a porta, indo diretamente para o banheiro, despindo-se pelo caminho.

Debaixo do chuveiro, enquanto a água quente fustigava as suas costas, permitiu-se derramar as primeiras lágrimas, que se transformaram em um choro convulsivo. Sentou-se no chão, e entregou-se aquele choro, pois ela precisava pôr para fora toda a angústia que sentia. Quando lhe faltaram as lágrimas, levantou-se, terminou o banho, e enrolou-se no roupão, enquanto usava a toalha para secar seus cabelos.

Mirou-se no grande espelho enquanto fazia isso, e, sem saber o porque, despiu-se de maneira sensual, observando seu próprio corpo. O rosto era belo e expressivo. Os olhos eram verdes, felinos. Os cabelos caíam de maneira sedosa por seus ombros, e ela os jogou para trás para examinar seus seios, perfeitamente redondos e de mamilos rosados. Sua pele era alva e sem nenhuma imperfeição, e sentindo-se estranhamente orgulhosa, e encabulada, colocou-se de costas, e observou, satisfeita, que nenhuma estria ou celulite a marcava.

"Tolo idiota. Perdeu a mulher mais foda que já teve", pensou, e assim, nua, começou a se maquiar, enquanto a tarde ia se transformando em noite. Pintou as unhas, escovou os cabelos, perfumou-se. Escolheu a menor e mais sensual das lingeries que comprara, e colocou um vestido preto de alcinhas colante que revelava cada curva de seu corpo. Pegou uma bolsa preta de festa que comprara, o cartão de crédito, algum dinheiro e o batom, e saiu, largando o quarto como estava.

O efeito foi imediato. Assim que saiu do elevador, no saguão do hotel, atraiu a atenção de quase todos os homens que ali se encontravam, e vingativa, ignorou a todos enquanto caminhava com a elegância digna de uma mulher sensual, que consegue ser provocante sem ser vulgar.

A noite estava quente. Não precisou rodar muito de táxi para encontrar um pub, que mais parecia uma boate. Desceu, pagou ao taxista, e sozinha, entrou. Pediu uma tequila, virou, e foi direto para pista de dança, onde tentou exorcizar os seus demônios. E agora, estava aqui, encostada neste maldito balcão, virando tequilas, amaldiçoando cada homem ao mesmo tempo em que desejava que pelo menos um deles a amasse de verdade.

E então, ele se aproximou. Usava uma blusa xadrez, de botões, calça jeans e bota. Não era bonito, sua barba estava por fazer, da mesma maneira que ela o vira na estrada, pela manhã, o que parecia ter sido um século atrás. Seus cabelos, já muito compridos para o gosto dela, estavam bagunçados, e ele passou a mão por eles, numa vã tentativa de ajeitá-los, antes de se dirigir a ela.

-Sophia, não é? - Perguntou ele, com um sorriso a brotar nos lábios. Ela reparou que embora não fosse bonito, possuía um certo charme. Mas lembrou-se da maneira que ele se comportara quando se encontraram, e evitou sorrir de volta, limitando-se a acenar afirmativamente com a cabeça, enquanto ele lhe estendia a mão.

- Matheus. Muito prazer - continuou ele - Não tive chance de me apresentar antes.

Ela deixou a mão descansar na mão dele, e o sorriso dele pareceu aumentar.

- Olha, eu já estou de saída, mas estou indo para uma festa perto daqui. Alguns amigos estarão lá. Gostaria de me acompanhar? Prometo que tem tequila...

Ela preparou-se para recusar, mas algo dentro dela rebelou-se. Sentiu uma grande vontade de gritar um "foda-se" para toda prudência que tivera até aqui. Estava arrasada, e a última coisa que queria era voltar para aquele quarto de hotel e encarar que havia sido traída pelo homem em quem ela depositara toda a sua confiança. Sorriu, e ele pareceu assustar-se com aquilo, e ela ouviu a sua própria voz murmurar um "Por que não?". Tinha certeza que ele também ouvira, pois os olhos dele brilharam de admiração quando ele jogou algumas notas sobre o balcão e a puxou pela mão para fora do pub, para longe daquela música, em direção a noite quente e estrelada.

Caminharam por algumas esquinas, em silêncio, até que pararam em frente a um prédio. Sua fachada era larga, o que sugeria apartamentos grandes, embora ele não fosse tão alto. Uns seis andares, talvez? Podia ouvir o som da música. Ele tocou um botão do interfone, e uma voz de mulher atendeu. Ele disse apenas o seu nome, e o portão abriu-se. Ele o empurrou, e deixou que ela passasse a sua frente, com uma mesura. Ela sorriu, e ambos foram sorrindo até a porta do elevador.

Entraram, e novamente, silêncio quase constrangedor. Ele a olhava, meio fascinado, e ela o olhava abertamente, esperando que ele tomasse alguma iniciativa. Mas nada aconteceu, e eles chegaram até o andar de destino.

Novamente, ele abriu a porta e permitiu que ela passasse. Assim que saiu, ela viu-se em uma imensa sala, ampla, com inúmeras pessoas circulando. A música dominava o ambiente, mas sem incomodar os outros sentidos. Seus olhos passearam pelas pessoas que dançavam, conversavam ou simplesmente seguravam um copo, apreciando a bebida. Pareciam todos ricos e bem sucedidos, e pertencentes a várias etnias. Definitivamente, era uma festa eclética. Sentiu uma mão segurar a sua, e sobressaltou-se, virando-se. Era Matheus.

- Divirta-se. Estarei por aqui...

E afastou-se dela, que se sentiu um pouco desnorteada, mas achou rápido o que queria: Um garçom. Pediu tequila. Virou. Foi para pista de dança. Curtiu a sensação de não ser observada. Outra tequila. Scoundrel Days tocava nos autofalantes, e ela cantou junto enquanto dançava e se deixava levar pela música. Mais uma tequila. A mente vazia, o corpo leve, toda a tensão sendo liberada pelos poros enquanto ela transpirava sem se preocupar com a sua maquiagem. Estava, definitivamente, bêbada.

Estava agora em uma sala, anexa ao salão principal, e conversava alegremente com algumas pessoas. Um deles era um homem pálido, com um olhar sombrio e ameaçador, roupas elegantes, e segurava uma taça com vinho. Próxima a ele, uma mulher de cabelos vermelhos, vestido dourado, decote generoso.

- Bom, Sophia, você compreende o que estamos fazendo aqui? - Perguntou Matheus, que estava ao seu lado, e olhava diretamente para o homem de terno. Havia alguma inimizade entre eles. Coisa de homens, sempre competitivos, pensou ela, enquanto voltava sua atenção para Matheus. - Você não está respondendo por você, mas por toda a sua espécie. A cada 100 anos, pessoas da minha espécie, da sua espécie e da espécie deles se encontram em uma festa como esta. Para rever o acordo. Nada pode ser feito sem a permissão de um de vocês, humanos, e hoje você foi à escolhida para responder pela humanidade. O que me diz?

Ela olhou para ele. Olhou para os outros e sorriu. Até onde entendera, alguns ali protegiam a humanidade. Outros, a caçavam. E os humanos aparentemente ignoravam isso, embora os que os caçassem afirmassem para os que os protegiam que o faziam sempre com o consentimento dos humanos. E parece que dependia dela que isto continuasse. Decidiu entrar de vez naquela brincadeira.

- Bom, - começou ela - Eu acredito que os humanos não mereçam proteção. É sério! Por exemplo... hic... Desculpe, eu bebi um pouco... Mas por exemplo, o que os humanos protegem? Para que servem? Seria bacana se tivesse alguém ameaçando toda a humanidade...- Ela gesticulava, cambaleando, indicando com os braços a dimensão da palavra 'toda'. - Nós teríamos que nos unir, não? Acho que se toda a humanidade tivesse um único inimigo em comum, nós nos veríamos como humanos e nos ajudaríamos... Não é? Por exemplo, não haveriam traições, e ninguém se sentiria sozinho, porque poderíamos contar e realmente confiar uns nos outros... Hic...

- NÃO! SOPHIA, VOCÊ NÃO PODE CONCORDAR COM ELES! - Gritou Matheus, mas o homem de terno apenas o olhou, e ele controlou-se. - Não cabe a eu escolher por você, Sophia. Prossiga...

Ela o olhou com alguma ternura e uma certa pena, e começou a rir daquele jogo. Bom, esta era a opinião dela. Se havia algo que a humanidade precisava, era de um predador, para caçá-los e lembrá-los o motivo pelo qual começaram a viver em sociedade. Pobre Matheus... Parecia desolado pelo fato, mas não se pode proteger a humanidade, porque a humanidade não protege a si mesma! Ele deveria saber disso. Ou não passava de um ingênuo.

- Bom, por mim ok! Quando começo a fugir e a ser perseguida? - Perguntou, segurando uma gargalhada, observando o casal ameaçador.

Entregaram a ela papel e caneta. Ela assinou sem ler. Daí pra frente, tudo ficou muito confuso... Matheus desapareceu da cena, e ela recorda-se vagamente de uma criatura parecida com um urso saltar na direção do homem de terno. Lembra-se da mulher mostrar presas e garras enormes para a criatura, e aí seu mundo girou, ela escorou-se na parede e começou a vomitar.

E agora estava parada na porta do seu hotel, vendo o Jipe de Matheus dobrar a esquina. Sentia-se horrível. Seu estomago estava embrulhado, sua cabeça doía, e ela provavelmente não lembraria de nada desta noite. Mas acima de tudo isso, ela sentia medo. E estava sozinha. Deu as costas para madrugada, indo para o seu quarto. Não podia mais evitar o amanhã.

6 comentários:

  1. Karine, obrigado pela ajuda, neste e no conto anterior!

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  2. Como sempre a forma como escreve me transporta para as sensações dos personagens, eu senti a Sophia e seu dia terrível...esse conto teve uma pegada mais sexy e feminina, atitudes e sensações de mulher traída, desesperada, vingativa, que se permite e se admira...como Sophia. Desde a escolha da bebida da Sophia até a sua escolha de ser a caça, da humanidade merecer um caçador, mais uma vez eu vivi esse conto...de uma forma mais especial, pois eu adoro vampiros e dessa vez pelo clima que descreveu e que eu imaginei da festa, senti que se tratavam de vampiros...adorei!

    Parabéns Bruno...e se depender de mim seriam dois por dia...

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  3. Não precisa agradecer, adorei ter ajudado!!!

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  4. Hahahahahahahhahaha
    EXCELENTE!!!!

    É sempre bom ter um dia de cão e tomar um senhor porre de tekila antes de decidir o futuro da humanidade!
    Formidável!!

    Sophia Rules!!

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  5. Você tem canalizado sua sensibilidade do ascendente peixes de forma produtiva. Escrever um personagem feminino com essa riqueza de detalhes foi estupendo. Ao mesmo tempo pergunto-me se a escolha de Sophia teria sido diferente se ela não estivesse bêbada e tivesse tido um bom dia... Sua capacidade de descrição é quase Machadiana. Feliz!

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  6. Po, Natalia, sem exageros... :) Obrigado pelos elogios!

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