O toque frio e úmido das pedras sob seus pés descalços, que normalmente a fariam arrepiar-se, passava despercebido pelos seus sentidos entorpecidos enquanto ela caminhava pelo corredor mal iluminado. O odor acre liberado pelas chamas, única fonte de luz do longo corredor, e o som das ondas explodindo em algum lugar acima também eram ignorados, tal qual a presença das duas figuras encapuzadas que a escoltavam e a guiavam por aquele verdadeiro labirinto subterrâneo.
Seus cabelos longos e escuros estavam molhados e salgados, o que provavelmente denunciaria de onde ela vinha. O longo vestido branco, naturalmente transparente, teimava em colar ao seu corpo enquanto caminhava, por estar também molhado, mas aparentemente nenhum dos seus acompanhantes parecia notar.
Enquanto caminhavam, um coro de vozes começara a ser ouvido, entoando algum tipo de canção religiosa em uma língua desconhecida, e a cada passo dado pelos três pelo longo corredor, este se tornava mais largo e o som mais forte. Um vento frio passou por eles, vindo da direção para onde seguiam, e trouxe consigo a lembrança de coisas desagradáveis, antigas e decadentes. E os que acompanhavam-na começaram a cantar.
Entravam agora em um imenso salão, também feito em pedra, onde aproximadamente cinquenta pessoas aguardavam por aquele momento. Estas pessoas estavam dispostas em um grande círculo, e no centro deste, uma escada que levava a um altar nas cores verde e salmão. Sobre o altar, jazia um corpo, mas a distância ainda não permitia definir muita coisa.
Enquanto ela caminhava em meio à multidão, a cantoria cessou, e eles a acompanhavam com os olhos, todos cobertos por seus capuzes esverdeados e puídos. Passo a passo, ela dirigia-se ao altar, alheia a tudo, seus verdes olhos inexpressivos, deixando pequenas poças de água salgada. Um trovão fez-se ouvir no momento em que ela alcançava o começo da escadaria, onde uma pequena mesa decorada com figuras desconhecidas sustentava um punhal com cabo de osso.
Ali, seus dois acompanhantes a fizeram parar, e um deles pegou o pequeno punhal, cortando a própria mão. Levou então a mão cortada à testa dela, tingindo de vermelho a pele alva do rosto perfeito. O sangue escorria pelo rosto, cobrindo também suas pálpebras, mas ela parecia não se importar. Ele entregou então o punhal a ela, e ambos colocaram-se de joelhos, enquanto ela tocava o primeiro degrau com os pés descalços. Sua visão tornara-se rubra e distorcida, e a cada passo, algo gritava desesperadamente dentro dela. Lembranças de algo muito antigo, que ocorrera há tempos distantes, longe deste templo, longe deste lugar, tentavam acordá-la. Mas era em vão. O que eram as suas memórias comparadas com os desejos dos antigos?
Alcançou o segundo degrau. Ela estava agarrada a ele, jovem demais, indefesa demais, e ele, também muito jovem, tentava protegê-la das chamas que rugiam ao seu redor e de algo muito mais perigoso.
Seus pés tocaram o terceiro degrau, e ela novamente em sua cama, debatendo-se em desespero, e acordou gritando, mas antes que pudesse começar a chorar ele passava pela porta de seu quarto, sentava-se na cama e a abraçava, protegendo-a.
No quarto degrau, ela estava em uma rua, à noite, voltando de alguma boate sozinha após as amigas a abandonarem. Uma mão, forte demais para que ela se soltasse, a agarrara e a puxara para dentro de um beco, e antes que ela gritasse uma outra mão tampava a sua boca. Sentia o mau cheiro dele, o fedor de álcool, e a excitação de encontro as suas penas desnudas. Lutou, debateu-se, mas um golpe em sua face a fez tontear, e ele se aproveitou disso para levantar a sua saia e esfregar sua ereção entre as coxas dela. Ela chorava de medo e desespero, mas pôde ouvir o som do vento deslocando-se, seguido do som de algo quebrando, e a pressão sobre ela diminuiu gradativamente, enquanto uma mão, agora protetora, a guiava para longe dali, para segurança do lar.
Quinto degrau. Estavam juntos, ao som de Smashing Pumpkings, dançando feito loucos no apartamento vazio que ela acabara de alugar. Seu primeiro apartamento, e seus únicos bens eram uma geladeira, um colchão, e um som superpotente, que ele dera de presente. E ela estava feliz, e via nos olhos dele sua própria felicidade estampada.
Sexto degrau. Seu último namorado a deixara, abandonando-a completamente. Ele a consolava, e enquanto ela chorava, ele dizia que ia vingá-la, que iria atrás dele, que quebraria seus joelhos, e a acalentava em seus braços.
Sétimo degrau. O último. A lembrança mais dolorosa. O sorriso dele, largo, abundante, iluminado. Bom. Simplesmente bom. O sorriso dele ao vê-la, ao falar com ela, ao contar uma piada ou falar sobre suas longas viagens. Sobre seus amores, sobre seus poucos amigos. O sorriso que iluminava toda a escuridão que sempre a cercou, que servia de farol em meio à tempestade que fôra a sua vida.
Tudo isto se resumia a nada, agora que ela dava os últimos passos que a separavam do altar onde o corpo dele encontrava-se desacordado, sobre inúmeras algas, lulas e outros invertebrados providos de tentáculos. Ela ergueu o punhal, com ambas as mãos, enquanto mirava sua face, ignorando a sua nudez. Os cantos recomeçaram. Um trovão dominou os céus. Suas mãos desceram violentamente, cravando o punhal no peito do homem ali deitado. Ela sacrificara o próprio irmão, e a humanidade estava condenada...
E ela gritava de dor, de tristeza e de remorso, sozinha em seu quarto, despertando de um terrível pesadelo. Transpirava, e seu suor umedecera toda a sua cama, apesar da janela estar aberta, e do vento úmido balançar incessantemente as cortinas. Olhou ao redor, ainda com lágrimas a escorrer pela face, e reconheceu todos os seus bichos de pelúcia. Olhou-se, no espelho colocado na parede oposta, e ainda tinha seus doze anos, e estava no seu quarto, na casa de seus tios. Nada tinha a temer.
Um relâmpago iluminou todo o quarto no momento em que ela colocava-se de pé para fechar a janela, e esta luminosidade revelou um homem sentado em sua cama. Ele estava de terno, e seus cabelos eram loiros e bem cortados. Os olhos amarelos a fitavam, e ele sorriu quando ela se sobressaltou.
"Acalme-se, criança", disse ele, e sua voz era misteriosamente envolvente. Ela acalmou-se, e para a sua surpresa, sentou-se na beirada da cama, observado o estranho. Ele prosseguiu: "As coisas não precisam ser do jeito que você viu. Há uma outra saída. Existe uma escolha. E eu estou aqui para dá-la a você..."
Neste momento, a porta do seu quarto se abriu, e como de costume, seu irmão aparecia, com o olhar preocupado, colocando-se ao lado dela e a abraçando.
O estranho desaparecera, abandonando-a com as suas dúvidas.
"Calma Sarah. Foi só um sonho ruim. Eu estou aqui", disse Arthur, seu irmão.
"E eu também, Sarah", ecoou uma voz envolvente que apenas ela podia ouvir.
Entorpecida demais para comentar como queria agora... De tirar o fôlego. Muito orgulho de ter te incentivado a voltar a escrever. Me lembrou As brumas de Avalon, o que é um baita elogio, já que é meu livro favorito! Obrigada!
ResponderExcluirOtimo, agora to curiosa p saber o resto..
ResponderExcluirCara, muito bom!!!
ResponderExcluirUma narrativa envolvente, emocionante, ligeiramente assustadora...
Muito bom mesmo!!!
Aguardando cenas do próximo capítulo!
...você escreve com uma riqueza de detalhes que transporta, não só ao lugar, mas as sensações, eu sinto muito lendo você...
ResponderExcluirA maneira como escreve e descreve prende a atenção até o fim, e surpreende, deixando no fim uma vontade de querer mais...
Parabéns!
Seus contos me fazem refletir sobre muitas coisas, e quando eu leio passa um filme na minha cabeça. Engraçado, a história desse me assustou um pouco.
ResponderExcluirObrigado por escrever.