sábado, 29 de janeiro de 2011

O Viajante

Seus olhos abriram-se lentamente, enquanto uma mão insistente segurava seu ombro esquerdo e o chacoalhava. Sonolento, levou alguns segundos para recordar-se de onde estava, olhando meio pasmo ao seu redor. Sentiu suas costas doerem, e percebeu que se encontrava em uma posição desconfortável, enquanto olhava para o homem suado, baixo e sorridente, com uma camisa azul estufada na altura do ventre, que tocava seu ombro e o acordava. Era o motorista do ônibus.

- Hei, amigo, chegamos! Última parada!

Aquelas palavras ecoaram de maneira estranha para ele, que sorriu para o homem, agradecendo. Lançou um último olhar pela janela a sua direita, espreguiçando-se, e gostou do que viu. Estava em uma rodoviária pequena, onde seu ônibus era o único estacionado. Estava limpa, muito mais do que ele esperava que uma rodoviária de cidade pequena pudesse estar. Dali podia ver uma praça gramada e arborizada, com um pequeno coreto. Além do coreto, ainda na mesma praça, estava uma construção antiga, mas muitíssimo bem conservada, com suas paredes na cor salmão, e pilares romanos brancos em sua entrada.

Levantou-se. Estava com a boca seca, e acreditava que seus cabelos e todo o seu rosto estavam amarrotados. Passou a mão por eles, sentindo a oleosidade dos mesmos. Precisava de um banho. E de uma boa refeição. E com o intuito de providenciar ao menos uma destas coisas, colocou a sua mochila cargueira nas costas, e desceu do ônibus, desejando boa viagem e boa sorte para o motorista.

O sol estava extremamente luminoso, embora a temperatura estivesse agradável. Demorou-se, parado, enquanto seus olhos se acostumavam com a claridade, e caminhou em direção a praça, que ficava na calçada oposta. Rumou a passos largos, ouvindo o som de suas botas em contato com o chão da rua irregular, feita em paralelepípedos, misturar-se com a voz das crianças que brincavam na rua transversal a que ele atravessara, a sua direita. Caminhou pela grama verde da praça, em direção ao pequeno coreto, e percebeu que o olhar dos jovens casais, grupos de amigos e idosos era direcionado a ele. Sentiu um certo embaraço, pois apesar de sua aparente extroversão, era tímido. Principalmente quando se tratava de pessoas que ele não conhecia.

Enquanto olhava para as pessoas da praça, não percebeu a aproximação de uma garota, que agora andava ao seu lado. Estacou momentaneamente, olhando-a com ar incrédulo, tentando compreender o motivo dela estar acompanhando seus passos. Ela também parou, e olhou-o com uma expressão curiosa. E sorriu.

Ele percebeu que seus olhos eram de cores diferentes, o direito azul, e o esquerdo verde, mas achou prudente não fitá-los por muito tempo. Sua pele era branca, um pouco rosada devido ao sol. Seus cabelos tinham uma tonalidade avermelhada, mas ele não pôde precisar a cor, uma vez que em alguns locais era mais escuro, e em outros, mais claro. Mas tinha certeza de que eram curtos, e mal tocavam a nuca nas partes em que era mais longo. Ela era bem mais baixa que ele, que a olhava do alto dos seus 1,80m, embora ele tivesse a impressão de que ela poderia acabar com ele a qualquer momento. E usava roupas estranhas e incomuns. Um par de botas de cano alto, um short jeans curto, uma camiseta com listras verticais multicoloridas que o faziam lembrar do sinal de barras que apareciam na tv quando um canal saía de ar, e por cima disso, um paletó. Roxo.

Parecia que ela também o avaliava, mas com um sorriso no rosto. Quando pareceu satisfeita, falou com a voz mais estranha que ele já ouvira, embora não deixasse de ser uma voz bonita e poderosa.

- Você nem sabe onde está, não é mesmo?

Ele balançou a cabeça de um lado a outro, vagarosamente, indicando que ela estava certa.

- Sabe ao menos porque está aqui?

Ele novamente balançou a cabeça. Percebeu que estava de boca aberta, e tratou de fechá-la.

- Vem, me segue. Vou te apresentar a cidade, e providenciar para você um lugar para comer. E outro para tomar banho...

Disse, franzindo o nariz enquanto andava a sua frente.

- E não olhe para minha bunda, ok?

Acrescentou sem olhar para trás, mas ele sabia que era um aviso sério e que não deveria mesmo olhar. Sentiu-se idiota por estar seguindo aquela menina, mas algo dentro dele dizia que era exatamente isto que devia fazer. Caminhou por algumas ruas, e foi guiado para uma pequena pensão. No caminho, percebeu que as pessoas acenavam discretamente para ela, e o seguiam com o olhar. Depois, percebeu que o leve aceno era na verdade para ele, e que as pessoas o olhavam com um misto de curiosidade, admiração e medo. Estava tudo muito, muito estranho.

Dentro da pequena pensão, foi recebido pela proprietária, uma senhora com um vestido florido, um pouco acima do peso, que aparentava estar na casa dos 40 anos, e por mais duas meninas, com aparentemente 16, 17 anos, provavelmente funcionárias. Elas não olhavam para ele, e ele constatou que elas não eram atraentes. Tinham o jeito acanhado que a maioria das meninas do interior possuí, embora a de cabelos pretos já apresentasse curvas promissoras. A loira não passava de uma criança desenvolvida.

Foi prontamente atendido. Alugou um quarto, sem nem ao menos questionar o valor, e dirigiu-se para ele, que ficava no segundo andar, e enquanto subia as escadas, percebeu que a menina de olhos desiguais o acompanhava. Enquanto abria a porta questionava-se se ela realmente tinha a intenção de entrar, e sua pergunta foi respondida assim que ele terminou de abri-la, pois ela passou a sua frente e atirou-se na cama. Ele fechou a porta atrás de si, temeroso, e colocou a pesada mochila no chão, ainda encarando-a.

- Você não vai tomar banho? Sério, está realmente precisando...

Ele não se deu ao trabalho de responder. Pegou a sua mochila, e entrou no banheiro, trancando a porta ao passar por ela. Virou-se, e deu de frente com a sua imagem refletida no espelho. Sua barba estava por fazer. Seu rosto estava magro, e sua blusa preta estava empapada de suor. Seus cabelos negros, com muitos fios brancos, estavam oleosos e com aspecto sujo. Ele realmente precisava de um banho.

Livrou-se de suas roupas, atirando-as ao chão de qualquer jeito, e perguntou-se novamente o que estava fazendo ali. Sem conseguir achar uma resposta plausível, abriu o chuveiro, e deixou que a água levasse embora tanto a sujeira quanto as preocupações que o assolavam. Se era pra acontecer algo inesperado, que acontecesse. Não era a toa que ele estava com uma mochila, contendo todas as roupas que ele pôde carregar. Também não era por acaso que acordara em uma cidade que ele não conhecia, da qual ele sequer sabia o nome. Já que estava aqui, seguiria até o fim.

Saiu do banheiro sentindo-se renovado. Usava agora uma calça cargo preta, com muitos bolsos, e uma das suas inúmeras blusas pretas, e decidiu abrir mão de sua bota, calçando chinelos confortáveis que trazia em sua mochila. Ela ainda estava sobre a cama, e agora o olhava, parecendo satisfeita.

- Não vai fazer a barba?

Ele fez novamente que não com a cabeça. Não tinha coragem de falar, pois sua voz pareceria insignificante diante da dela, e porque as palavras eram desnecessárias até o momento. Ela sorriu, levantou-se, e encaminhou-se para porta.

Ao chegarem no andar térreo, onde ficavam as mesas para o restaurante, o cheiro de comida caseira dominou todos os seus sentidos. Seu estômago dominou os outros órgãos. Ele estava derrotadamente faminto, e parecendo adivinhar isto, sem que ele pedisse, a proprietária serviu-o. Ele devorava a sua comida, e apenas percebeu que sua companheira não comera nada quando terminou. Levantou-se, agradecendo a proprietária, e quando questionou sobre o valor, ela sorriu nervosa para ele, e com o olhar esperançoso, disse que era por conta da casa. Ele ia discutir, mas a menina dos cabelos curtos e avermelhados o pegou pelo braço e o fez segui-la, sob o olhar atento das funcionárias da pensão.

Ele caminhou com ela por diversos locais da pequena cidade. Na verdade, ele descobriu que não passava de um vilarejo, onde o principal meio de transporte era a bicicleta, onde carros eram raros, onde todas as pessoas se conheciam pelo nome. E ele foi apresentado a cada uma delas, enquanto andavam em direção a praça principal, aquela que ele vira pela janela do ônibus quando chegara. Atravessaram o gramado, e também o coreto, e rumaram para o prédio antigo, bem conservado, da cor salmão com pilastras brancas. Ao chegarem, ele percebeu que era muito mais alto do que ele imaginara, uma construção totalmente desproporcional a cidade na qual se encontrava. Embora ele pudesse ter três andares separados em seu interior, ao passar pelas portas duplas, ele saiu em um único salão redondo, iluminado por uma clarabóia no teto e por vitrais em suas paredes altas. Por toda a extensão das paredes, livros e mais livros. Ele estava em uma única e imensa biblioteca.

Olhou para trás, e viu que pelo menos metade da população da cidade estava do lado de fora, observando-o, enquanto ela o fazia avançar pelo salão. Seus passos ecoavam, enquanto os dela não faziam o menor ruído. Atravessaram inteiramente a biblioteca, em silêncio respeitoso, e saíram em um jardim, totalmente coberto por parreiras colocadas a cinco metros de altura. Cercas vivas serviam como paredes, e isolavam aquele recinto do mundo exterior. Estátuas de mármore estavam espalhadas por ali, e um pequeno riacho cortava paisagem, com uma ponte de madeira a atravessá-lo. E no meio de tudo isso, uma grande cadeira, quase um trono, e uma mesa, sobre o qual encontrava-se o maior livro que ele já vira. Ele estava aberto, e suas folhas estavam em branco. Ao lado do livro, um tinteiro.

Ele ficou de frente para ela ao chegarem à mesa, e antes que pudesse perguntar onde estavam, ela estendeu uma pena branca em sua direção. Ele hesitou.

- Meu irmão me pediu para trazê-lo até aqui, embora ele quisesse ter vindo, mas foi impedido por outros assuntos. Então, em nome dele, eu te pergunto: Gostarias de ser o Escritor de Sonhos?

Primeiro, ele achou que fosse algum tipo de brincadeira, mas percebeu imediatamente que não era. Então, foi assalto pelo pavor, e todo o seu corpo começou a tremer. Não, ele não queria ter esta responsabilidade, ele sequer era um escritor de verdade! Tentou gritar que ela estava errada, que ele não era a pessoa certa, que tudo era um grande engano, mas apenas balbuciou palavras sem sentido. Ela preocupou-se, e colocou ambas as mãos em seus ombros, enquanto dizia em tom tranqüilizador:

- Calma! Você não será o escritor de todos os Sonhos! Apenas responderá pelos sonhos dos moradores desta cidadela! Ou acha que meu irmão realmente colocaria você em um cargo acima de sua capacidade? Claro, com o passar dos anos, você provavelmente vai subir de posto, mas isso leva tempo, e até lá...

Ele não estava mais prestando atenção. Descobriu o que afligia as pessoas daquela cidade. Elas não sonhavam! Nenhuma delas possuía sonhos! Era por este motivo que todos o olhavam, e provavelmente era por isto que estava ali! Eles contavam com ele para aquela função!

Ela havia parado de falar, e o olhava. Ele pegou a pena de suas mãos. "Hei, amigo, chegamos! Última parada!" As palavras ecoaram em sua cabeça. Ele sentou-se na grande cadeira, e mergulhou a ponta da pena no tinteiro. Ela desapareceu em pleno ar, lançando para ele uma piscadela e um olhar insano. Lá fora, as pessoas se abraçavam, comovidas. Elas sonhariam esta noite.



Natalia Bemfeito, este conto é seu e apenas seu. Espero que aprecie o presente.

5 comentários:

  1. A idéia de uma cidade sem sonhos assusta e ao mesmo tempo fascina. Como sempre, seu conto (digo, meu) foi sinestésico: visualizava cada cena, sentindo até os cheiros dos personagens. A menina de cabelos curtos e olhos um de cada cor é encantadora! O rapaz, meio perdido, com a missão de escrever sonhos também foi muito bem criado. Obrigada, amei, e tem a minha cara, de alguma forma sinto-me co-autora ;)

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  2. A imagem que o ilustra caiu como uma luva :)))

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  3. Muito tentadora a idéia de escrever os sonhos alheios! Adorei o tema.
    O conto é instigante, porque o leitor começa "no escuro", assim como o personagem principal, então parece que a gente também vai entendendo um pouco melhor a situação a cada passo (ou melhor, a cada palavra).

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  4. ...enquanto eu lia, eu via, sua capacidade de descrever é incrível e a minha de imaginar me remete ao que é familiar nesse narrador (personagem)...
    A idéia que colocou do tal homem ser mais "forte", mas a "pequena" poder acabar com ele a qualquer momento é uma idéia de força e poder que eu gosto...foi sucinto e claro, reconhecer a fragilidade no "bruto".
    Eu andei pela cidade, eu vi a biblioteca e saí em um jardim, eu o vi no espelho e percebi o pânico diante de tamanha responsabilidade sobre os sonhos das pessoas daquela cidade... Como seria uma vida sem sonhos? Será que alguém é capaz de "sonhar" o sonho do outro? Os pesadelos?
    Muito instigante...em um certo momento eu pensei que o personagem fosse acordar na estação...
    Enfim, mais um post seu que eu adoro!Parabéns!

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