quinta-feira, 9 de junho de 2011

Fidelidade

“Mais uma sexta”, era o que ela pensava, animada, enquanto mirava-se no espelho preso na parte interior da porta do armário. Com os cabelos molhados, deixou que a toalha escorregasse para o chão, revelando sua alva nudez, admirando os seios e a barriga. Passou a mão por um deles, o sentiu, e olhou-se de maneira provocante. Gostou do que viu, e soltou uma risada de satisfação, enquanto voltava a sua atenção para seu estojo de maquiagem. Era hora de se preparar para... Para o quê mesmo?

Era o que ela se perguntava toda sexta, antes de dar de ombros e começar a se produzir. Não fazia a mínima idéia do que estava procurando, do que exatamente esperar, e isto causavam nela uma inexplicável frustração quando a manhã de sábado vinha e ela se dava conta de que não havia encontrado o que procurava. Mas não importava. Não muito. Ao final de cada semana, sempre haveria mais uma sexta, e a mesma sensação retornaria para motivá-la a sair e procurar. E sem pensar nisso, continuava a passar o lápis preto ao redor dos olhos, enquanto a voz de Nina Persson se espalhava pelo seu quarto, confessando que estava perdendo em seu jogo favorito...

...

Não sem alguma dificuldade, ele calçou a bota marrom do pé direito, e ergueu-se. Do alto dos seus 2,05m de altura, olhou-se no espelho que preenchia toda a parede do seu quarto, avaliando a combinação que ele chamava de “lenhador canadense”: Botas, calça jeans, blusa branca, blusão flanelado xadrez vermelho e branco aberto por cima. Some a isso a vasta cabeleira ruiva, desta vez presa em um rabo de cavalo, a barba por fazer, e os seus 120 quilogramas, que faziam dele um verdadeiro gigante diante dos padrões normais. Aprovou a combinação, e sorriu ao perceber que Ville Vallo começara a cantar os primeiros versos de ‘And Love Said No’.

“And love’s light blue… led me to you…” cantarolava, enquanto pegava sua carteira e seu telefone celular, colocando-os nos bolsos. Alcançou o controle remoto do som, desligou-o, e ainda cantando a música, saiu do apartamento em direção ao elevador. Sentia-se bem, sentia-se vivo, e sabia que aquela letra estava certa. Estava sendo guiado diretamente para ela, como todas as outras vezes. Era doentio, ele sabia. Loucura talvez. Mas não podia evitar, e tal qual mariposa atraída pela chama, ele voava novamente em direção ao sofrimento. E com um sorriso no rosto.

...

Ela desceu do ônibus atraindo todos os olhares masculinos... E alguns femininos, e sabia disso tão bem quanto sabia que não era linda. Estava longe de ser feia, mas o que realmente atraía era a sensualidade que ela exalava, especialmente nas noites de sexta. Algo dentro dela despertava, uma espécie de instinto primitivo que a transformava em um misto de fera e deusa antiga. Feminilidade ao extremo, com a completa consciência a respeito deste estado de graça. Cabelos castanhos soltos, perfume marcante, sorriso provocante, minissaia, meia arrastão, botas. A liberdade que só pode desfrutar quem tem a ciência de seu próprio poder.

Atravessou a rua, começando o seu tradicional ritual semanal, procurando por rostos conhecidos, enchendo de esperanças os estranhos em quem sustentava o olhar por mais de um segundo. Seguia em passos leves, em meio às motos que começavam a chegar. Sorria e acenava sempre que via uma face familiar, e de onde estava já podia ouvir o som da bateria, das guitarras distorcidas, e das vozes cantando em coro. Passou pelas mesas do lado de fora, colocadas na calçada, fazendo uma leve busca por algum conhecido, mas com pouca esperança, pois seus amigos ficavam lá dentro, onde o som era mais alto. Sorriu ainda mais ao vê-los, e foi juntar-se a eles.

...

Ele chegou cedo, pegou uma mesa e a primeira Heineken da noite. Serviu-se, acendeu um cigarro, deu um gole em sua cerveja e esperou. Sabia que, mais cedo ou mais tarde, ela passaria por ali. Ela sempre passava, todas as sextas, nas últimas doze semanas, e ele estava sempre ali, esperando por ela. Desde a primeira vez que a viu, ele sabia que era ela. A viu dançando, bebendo, sorrindo e chorando. A viu inclusive com outros homens, mas nenhum deles ficou com ela por duas sextas consecutivas. Ele sabia que ela estava procurando, e que era apenas uma questão de tempo para que ela o encontrasse assim como ele a encontrou. E então, o mundo passaria a ter sentido, e ele se sentiria completo.

Alguns conhecidos passavam por ele e acenavam, cumprimentavam, tocavam-lhe os ombros, mas nenhum ficava em sua mesa. A sua vigília era solitária, e muitas vezes entediante. Fumava um cigarro após o outro, e perdia-se em goles de cerveja e canções.

“Shot through the heart and you're to blame

You give love a bad name…”

Ela acabara de chegar, e ele acompanhava hipnotizado o caminhar dela. Estava ainda mais linda do que ele era capaz de se lembrar, e apesar da distância, ele teve a impressão de capturar seu perfume e apreciá-lo em pleno ar, em meio à fumaça de seus próprios cigarros. Ela caminhava em sua direção, enquanto olhava ao redor, fazendo seu tradicional reconhecimento. Acenava, sorria, e ele apenas a admirava, esperando que aqueles olhares e sorrisos fossem dedicados a ele antes que a noite terminasse. Bebeu novamente a sua cerveja, para resfriar o corpo que começava a esquentar de maneira abrupta. Percebeu que estava tremendo, e sentiu-se um idiota miserável e covarde, mas tudo isto perdeu o sentido quando ele percebeu que ela estava olhando diretamente para ele, e sorrindo. Tentou esboçar alguma reação, sorrir de volta, mas era tarde demais. Ela já olhava em outra direção, e caminhando da mesma maneira sublime que chegara, entrou no bar, deixando-o do lado de fora, encharcado em suor.

...

Seus pés e pernas doíam de tanto dançar, e a sua maquiagem feita com tanta dedicação estava agora desfeita pelo suor. Sorria, dançava e bebia, e cada uma destas coisas ela fazia sem nenhuma moderação. Estava alta já, apoiava-se nos amigos, falava aos berros, e tinha vontade de abraçar o mundo se isso fosse possível... E porque não era? Esta noite era dela, e tudo era possível. E esta noite era tão dela que decidira terminá-la sozinha, e dispensou cada um dos muitos pretendentes que se aproximaram, alguns com alguma simpatia, outros com total desprezo. Ela era única e especial esta noite, e não desperdiçaria esta sensação em troca de nenhum prazer carnal que algum homem pudesse proporcionar. Poderia tê-los quando bem entendesse.

Quando She Sells Sanctuary explodiu nos alto falantes, ela decidiu que era hora de ir. Olhou ao redor, tentou encontrar alguém com quem quisesse compartilhar o final daquela noite especial, e descobriu que estava muito melhor sozinha. Não aceitaria dividir o que estava sentindo com ninguém. Saiu do bar, sem se despedir, e cambaleando levemente pôs-se a caminho do seu ponto de ônibus, a algumas quadras dali. Ainda sorria, e sentia-se completamente feliz.

...

Ele já havia passado da décima cerveja quando a viu sair do bar, cambaleando, e não pode evitar sorrir. Saudou-a de longe, quando ela já estava de costas, erguendo o copo de cerveja, mas seu sorriso desapareceu no momento em que percebeu os três homens que saiam do bar logo atrás dela. Havia algo de estranho, e ele sentia isso na pele, literalmente. Arrepiou-se por completo, e sentiu que estava novamente tremendo. Largou o dinheiro na mesa, e levantou-se, percebendo que bebera um pouco além da conta. Mas não importava.

Transpirava muito, e esforçava-se para não ser notado, o que era não é muito simples quando se é um gigante ruivo de mais de dois metros de altura. Mantinha uma distância considerável, pois não queria arrumar nenhuma confusão desnecessária, mas também não queria deixá-la desamparada caso algo acontecesse. Na verdade, mal conseguia imaginar o que seria capaz de fazer caso algo acontecesse, pois só de cogitar esta hipótese sentia todo o seu corpo tremer. Avançou na escuridão da noite, enquanto ao fundo ouvia Ian Astbury cantar que o mundo dava voltas e o arrastava para baixo.

...

Ela estava perdida em seus pensamentos quando o trovão estourou nos céus, dando início a uma chuva inesperada. Sorriu, feliz até com a chuva que caia e que resfriava seu corpo, mas sua felicidade transformou-se em horror ao perceber que fortes mãos a agarravam e a jogavam para uma rua transversal a qual estava, com pouca iluminação. Abriu a boca para gritar, mas um punho acertou a sua face, calando-a e atirando-a ao chão. Percebeu que eram três homens, e todos haviam tentado agarrá-la no bar em que estava. Lembrou-se especialmente de um, que ela teve que morder para se soltar. Eles a ameaçavam e sorriam, e deixavam transparecer a embriaguez na qual se encontravam.

Ela não tinha outra saída. Ergueu-se, e deu as costas, tentando correr, mas sentiu mãos agarrando-a pelos cabelos e a arremessando contra o muro da casa próxima. Tentou gritar, mas dedos suados invadiram a sua boca impedindo-a, enquanto outras mãos já invadiam a privacidade das suas roupas e apertavam com força o seu corpo. Ela começou a chorar, em desespero, sem perceber que a escuridão crescia ao seu redor, e que mais alguém estava ali.

...

Ele observou os homens agarrarem os braços alvos que foram destinados a abraçá-lo, e jogarem o corpo perfeito e sempre desejado por ele para a rua escura. Viu quando um deles desferiu um soco no rosto angelical que ele um dia passaria os dias a beijar, e todo o seu corpo, que já tremia, começou a coçar. Estava chovendo, mas ele não percebia, pois todo o seu corpo já estava molhado em suor. Tentou correr na direção deles, mas foi tomado por uma dor incapacitante, sentindo que cada um dos seus músculos se contraia violentamente. Seus ossos estalavam, e ele prostrou-se, ouvindo a sua própria mandíbula deslocando-se, e sentiu o peculiar gosto do sangue dominar seu paladar. Ouviu o som de tecido rasgando, e nada mais importava, apenas libertar a fúria que estava sentindo.

Ergue-se, e estava agora muito maior e muito mais pesado do que já era. Correu, e percebeu que babava e arfava, e que de suas mãos cresciam garras e que de todo o seu corpo cresciam pêlos. Aproximava-se a uma velocidade vertiginosa, e sentiu um prazer inenarrável quando suas garras estraçalharam o pescoço do primeiro homem quando ele agarrou-o pela nuca. Antes que os outros dois pudessem compreender o que estava acontecendo, ouviu um rosnado que partia de sua própria boca enquanto arremessava o corpo sem vida que segurava com mão direita para longe, e as garras da sua mão esquerda penetraram junto com a sua mão e parte do punho no abdômen do segundo agressor. O terceiro o olhava aterrorizado, mas antes que pudesse gritar, ele o mordeu no pescoço e desabou todo o peso do seu imenso corpo sobre ele, liberando uma fúria que até então não sabia que poderia existir. Rasgou com seus caninos, e estraçalhou com os molares cada um dos ossos que ofereciam resistência, rosnando e arfando no processo. Sentia-se feliz. Salvara a sua amada.

...

Foi tudo muito rápido, e ela teve certeza de que estava louca. Chorava e tentava brigar pela sua integridade física, com os olhos fechados e mordendo os dedos que ainda trancavam a sua boca, quando percebeu que a pressão das mãos sobre seu corpo cessou. Abriu um dos olhos no mesmo instante em que seus ouvidos captaram o mais terrível e assustador som que já ouvira na vida, algo que nenhuma mente civilizada consegue ser capaz de conceber, uma espécie de rosnado capaz de despertar cada um dos seus mais profundos temores. E não pôde acreditar no que viu.

Uma criatura totalmente coberta por pêlos negros, com quase três metros de altura, com a cabeça que lembrava um imenso lobo, arremessava o corpo inerte de um dos seus atacantes para longe como se ele fosse um mero boneco de pano. E então, em um ataque de pura selvageria, destruiu cada um dos outros homens, mordendo, rasgando, tal qual um predador com uma presa recém-abatida. E ela não conseguia gritar. Sabia que deveria fugir, que deveria correr, que seria a próxima a ser devorada, mas seu corpo não reagia. Algo foi desligado dentro dela, e inerte, ela observou a carnificina.

Depois do que pareceu ser uma eternidade, a criatura abandonou o que sobrara do último homem, e aproximou-se dela. Encolheu-se como podia, tremendo, e a criatura aproximou o enorme focinho de seus cabelos, e cheirou-a. Então, apoiou a imensa cabeça sobre a dela, e emitiu algo que poderia ser um ganido, antes de se afastar. Percebeu então que a criatura a olhava, e pela primeira vez, sabia que estaria segura. Era o mesmo olhar que um cão é capaz de lançar ao seu dono, um misto de cumplicidade e adoração. Ela moveu a mão na direção da criatura, mas o monstro começou a tremer convulsivamente, ganiu, e ao som de ossos estalando, transformou-se em um imenso cachorro, olhando para a rua de onde ela viera. Ouviu vozes, e ela também olhou na direção da rua.

Ao olhar novamente, viu-se sozinha.



segunda-feira, 14 de março de 2011

Selo de qualidade?! Eu?! Como assim?!?!

Imaginem a minha cara de surpresa ao me deparar com a mensagem em meu último post...

Ganhei um selo de qualidade do blog "Raylson Bruno" ( http://raylsonbruno.blogspot.com )



O negócio é postar o selo, responder às perguntas e repassá-lo para outros blogs que eu considere que mereçam e ainda não têm:

Aqui estão as perguntas:
Nome: Bruno Oliveira Caldas
Uma música: Starway to Heaven, devido a uma enorme coincidência.
Humor: Extrovertido, mantenho sempre o bom humor. Ou tento.
Uma cor: Preto.
Estação: Outono.
Como prefere viajar: Estrada. Gosto das paisagens.
Um lugar: Topo da Pedra da Gávea.
Um filme: Into the Wild. Ou Donnie Darko.
Um livro: Tenho lido tudo o que encontro do Bernard Cornwell, mas sou fissurado no Neil Gaiman.
Um prazer: Evoluir. Aprender com meus erros e sempre enxergar que estou longe da perfeição. Isso me faz querer viver mais.
Um seriado: House.
Time do coração: Raça, Amor e Paixão, Oh meu Mengooo!!!
Frase mais dita por você: Sensacional!
Porque tem um blog: Porque meus amigos me motivaram a escrever.
Sobre o que você escreve: Contos que podem ou não ter correlação com a vida real. Qualquer coincidência é mera semelhança...
Escreva a primeira coisa que vier a cabeça: Ela então, ao sentir a água fria do mar tocando-lhe os tornozelos, enterrou ambos os pés, respirou o ar marinho, e lágrimas de felicidade desabrocharam de seus olhos encantados.
O que achou do selo: Uma baita homenagem que eu realmente não esperava! Obrigado, Raylson!

Quem merece:
http://contosoudelirios.blogspot.com/
http://perigosasideias.blogspot.com/
http://fodaseninguemlemesmo.blogspot.com/

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Memórias

Estava sentado em seu quarto, com as luzes apagadas, mexendo lentamente o gelo do copo com um dedo, sem perceber que a muito seu uísque barato tornara-se pura água num copo vazio. Relia o e-mail, ainda com os olhos vermelhos que denunciavam noites insônes, álcool, tabaco, e alguma tristeza. Sua palidez era quase doentia, e contrastava com as profundas olheiras acinzentadas que depositaram-se sobre seus castanhos olhos. Cabelos revoltos demonstravam o total desleixo com a aparência, enquanto os copos e talheres e garrafas e filtros de cigarros largados ao redor do monitor indicavam decadência. Fechou novamente o e-mail, e ignorou a foto que ilustrava dias melhores em seu monitor, levantando-se trôpego da cadeira e saindo do quarto, novamente ouvindo as palavras escritas ganharem eco em seus pensamentos. Passou pela sala, chutando as roupas largadas pelo chão junto a livros inacabados, cacos de cds e uma ou duas caixas de pizza. Algo correu pelo chão, subiu a parede e precipitou-se pela janela, um pequeno vulto, e ele imaginou se agora até os insetos o evitariam e o abandonariam. Agradeceu pelos insetos não digitarem e-mails, e chegou a cozinha, deparando-se com a pior parte do apartamento. Na pia, uma pilha de louça que clamava por limpeza, clamor este solenemente ignorado por ele. Caixas de comida congelada se espalhavam por cima dos talheres, garfos e copos que ali jaziam, e ele imaginou se deveria ou não acender a luz. Constatou que era melhor não.

Abriu a velha geladeira, e a lembrança novamente o assaltou, mas ele concentrou-se em seu objetivo: Mais gelo para seu uísque. Era tudo o que precisava. Retirou a cambuca de gelo, mas antes de fechar a porta do congelador, seu olhar percorreu o conteúdo das prateleiras. Maçãs passadas, leite vencido, duas garrafas de água pela metade, alguns condimentos estragados, e duas cervejas que ele comprara quando seus dias ainda possuíam algum colorido. Pegou uma delas, e bateu com força a porta do refrigerador antes de voltar para o quarto, tateando pelo apartamento deplorável.

Sentou-se em sua cadeira, e voltou a abrir o e-mail, pois encarar as duras palavras contidas nele era melhor do que ver aquele sorriso idiota estampado na própria cara que decorava a área de trabalho. Pegou a garrafa de uísque, derramou no copo até que este estivesse quase cheio (ou seria menos vazio?) e acrescentou duas pedras de gelo. Bebeu, e recolocando o copo sobre o móvel, empurrando o cinzeiro que transbordava guimbas, decidiu ler novamente. Talvez desta vez não doesse tanto.

Porém, uma voz (na verdade, Aquela voz) chamou seu nome, quase em um sussurro. Ia gritar, mas seu cérebro dominou seu instinto com a afirmação de que nada adiantaria clamar por socorro, já que ele não obteria nenhuma ajuda assim, e apenas se sentiria ainda mais ridículo. Então, limitou-se a girar lentamente a cadeira, enquanto um perfume (na verdade, Aquele perfume) invadia seus sentidos e o entorpecia. E ali estava ela, sentada em sua cama, com um sorriso estampado no rosto. Mas por algum motivo não era Aquele sorriso.

"Pronto, enlouqueci", pensou, enquanto encarava-a com o semblante impassível. Ficaram assim durante algum tempo, e então, como sua alucinação não desistia de atormentá-lo, desistiu ele, virando-se novamente para o computador. Selecionou algumas músicas, e deu play. Tornou a concentrar-se no texto a sua frente, mas o perfume ainda estava ali. Ouviu a respiração indignada, aquele leve suspirar que ela sempre dava antes de começar a brigar com ele, e ele sentiu a saudade arrebentar a represa que ele tentava em vão criar, e inundá-lo. Odiou-se, levou a mão ao copo e sorveu mais um gole de uísque.

- Vai mesmo continuar me ignorando?

Desta vez, o susto foi tamanho que ele derramou o uísque, amaldiçoando-se por isso. Virou-se, e ali estava ela, com sua tradicional saia preta de tecido leve que revelava as pernas que ele tanto admirava, sua camiseta preta colada ao corpo que revelava o busto generoso onde tantas vezes ele repousou, os cabelos negros emoldurando o rosto com as perfeitas imperfeições que ele admirara durante tantas noites insônes. E aquele rosto sorria para ele, e isso doía mais do que qualquer coisa poderia doer.

Lentamente, ela retirou as sandálias altas que usava, desafivelando-a uma a uma, ainda encarando-o, e estendeu ambas as pernas pela cama, olhando ao redor com um ar de reprovação. Ele percebeu que estava boquiaberto.

- Você está com aquela cara de idiota que eu consegui fotografar. Lembra?

Claro que ele lembrava. A foto tirada na praia, naquela viagem louca que eles fizeram.

- Quanto tempo você não arruma esta cama? Tá uma zona...
- Você está realmente aqui? Ou você é só uma alucinação provocada pela privação de sono e pelo excesso de álcool?

Ouviu sua voz e a desconheceu. Havia tempo que não falava coisa alguma.

- É claro que estou aqui! Onde mais estaria?
- Na sua casa. Vivendo a sua vida. Sem mim.
- Verdade, mas e você, consegue viver sem mim?
- Desde quando você se importa com isso?
- Desde sempre, idiota.
- Não, você não se importa.
- Me importo sim! E você está se destruindo. Por isso eu vim.

Ele balançou a cabeça, desacreditando do que estav acontecendo, e estendeu a mão, pegando um dos seus últimos cigarros, levando-o a boca, acendendo-o.

- É exatamente disso que estou falando. E você sabe que eu odeio cigarro.
- Tudo bem. Você não está aqui mesmo.
- Faz o seguinte? Apaga este cigarro, e senta aqui do meu lado. Vou te provar que estou aqui.

Ele apagou o cigarro, e cautelosamente, meio trêmulo, sentou-se ao lado dela. O perfume o atingiu, e ele não pôde evitar que as lágrimas brotassem.

- Calma... Calma...

A mão dela tocou a sua face, e ela o beijou gentilmente nos lábios. Depois o abraçou, colocando seu rosto contra os seios, e afagou os seus cabelos oleosos. Não sabe por quanto tempo ficou assim. Ela levantou-o, olhou-o nos olhos, e forçou-se a sorrir.

- Será que você não vê que eu estou aqui porque você me chamou? Não te abandonaria jamais!
- Mas você me abandonou!
- Não, eu não o abandonei. Nós apenas nos separamos. Foi isso.
- E não é a mesma coisa?
- Claro que não! Na verdade, acho que você não poderei abandoná-lo nunca, porque você simplesmente não vai deixar. Então, como tenho que ficar por aqui, vou começar dando um jeito em você.
- Han? Dando um jeito em mim?
- É. Você precisa arrumar esta casa. E precisa sair. E precisa rever seus amigos, eles o amam e sentem a sua falta. Precisa também conhecer gente nova, beber, viver a sua vida!
- Como é que é?! Você sempre foi contra isso tudo!!!! Você sempre reclamou dos meus amigos, você sempre detestava quando eu conhecia gente nova, e nem preciso te dizer que você simplesmente não confiava em mim!
- E mesmo assim, você não me esqueceu, e aqui estou eu.
- É. Mas... ainda não entendo.

Ele estava realmente confuso. Ou louco. Ou os dois. Ela o observava, sustentando um sorriso triste nos lábios. Passou as mãos pelos cabelos, e sentou-se com as pernas abertas, passando uma pelas costas dele e a outra por cima das suas pernas.

- Você não entendeu mesmo, não é? Você precisa sair desta fossa. Mas tudo isto foi provocado por mim, e eu me sinto na obrigação de ajudá-lo a sair desta. Antes que você faça alguma besteira.
- E quem é você, afinal de contas?

Perguntou ele, enquanto ela o puxava para si, beijando-o mais uma vez nos lábios. Ela não respondeu. Simplesmente o colocou na cama, deitando-o, e deitou-se junto a ele, beijando as lágrimas que ainda escorriam pelos seus olhos. Havia uma ternura que ele jamais vira no rosto dela, uma espécie de compreensão pelo que ele sentia que ela nunca demonstrara antes. Cobriu a ambos, enquanto o olhava nos olhos, e com o sorriso radiante que o fez se apaixonar, disse enquanto ele se deixava abater pelo sono que não vinha a dias.

- Eu sou a lembrança dela. Eu te fiz todo este mal. Mas você terá que conviver comigo, talvez pelo resto da sua vida, então deixe-me te ajudar. Eu tenho sido triste, mas quero que você faça de mim uma lembrança feliz...

Estas foram as últimas palavras que ele ouviu, antes de adormecer abraçado a sua lembrança.



Dedicado a todos que se lembram, mesmo sendo 'difícil viver carregando um cemitério na cabeça'.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Scoundrel Days

A vida de Sophia nunca fora uma maravilha, mas estava longe de ser o inferno que ela havia vivido nestas últimas 12 horas.
Encostada no balcão do pub, alheia a música alta, as pessoas que dançavam ao seu redor, aos gritos de homens comemorando alguma coisa na mesa próxima, as luzes que coloriam o ambiente, ela repassava cada um dos acontecimentos.

O dia havia começado bem, embora ela estivesse longe de casa e trabalhando. Participou de uma reunião com os gringos, para definir os valores do investimento total no novo negócio, e assim a sua comissão. Havia viajado na noite anterior, deixando Rodrigo, seu "namorido", sozinho em casa, coisa que ele sempre disse detestar. E havia se programado para chegar à noite, mas a reunião durou muito menos tempo do que ela esperava, e assim que terminou o almoço, estava indo para casa.

Mas a sua boa sorte havia terminado ali. Enquanto voltava, dirigindo seu sedã preto, passou por um imenso buraco na estrada que a obrigou a parar o carro, pois estourou seu pneu dianteiro. Debaixo de um calor de quarenta graus, no meio de uma auto-estrada, tentou em vão se entender com o macaco hidráulico, uma vez que seu telefone havia perdido completamente o sinal.
Para sua sorte, um jovem rapaz, ao vê-la, parou seu Jipe no acostamento e a ajudou. Bom, talvez fosse pedir muito que um homem não pedisse nada em troca após auxiliá-la, mas daí ao cara começar a dizer que finalmente a encontrara, e que ela era a pessoa escolhida havia uma grande diferença. Agradeceu, entregou a ele o seu cartão prometendo mentalmente a si mesma que iria trocar o número do celular, entrou no seu carro e seguiu sua viagem.

Ao chegar na cidade, parou seu carro por alguns instantes num sinal, e decidiu verificar se o seu telefone celular já estava funcionando. Péssima idéia. Dois pivetes, um deles armado, bateram em seu vidro, e com a arma apontada para ela, fizeram sinal para que ela entregasse a bolsa e o celular que segurava. Sem outra opção, sentindo-se completamente impotente e desamparada, com receio de ter uma morte banal, parada num sinal, entregou o que eles pediam. Um deles, ao vê-la após ela baixar vidro, fez menção de entrar no carro, mas o sinal abrira bem a tempo dela arrancar e dirigir o mais rápido que podia.

Ao estacionar o carro em seu prédio, ainda tremia, e por isso arranhou toda a lateral em uma das pilastras. Sentia-se um lixo, estava arrasada, mas o pior ainda estava por vir. Pegou as chaves e a carteira que sempre guardava no porta-luva, uma idéia que Rodrigo dera a ela e que na época ela achara idiota, mas que acabara acatando, e dirigiu-se ao elevador. Apertou o botão. Nada acontecera. Ouviu atônita enquanto seu porteiro lhe explicava que os elevadores estavam em manutenção, e que teria que subir até o sétimo andar pelas escadas. Tirou os sapatos de salto alto, e descalça, subiu todos os degraus, fazendo pequenas pausas entre os andares para tomar ar quando o fôlego lhe faltava.

Estava agora parada, em frente a sua porta, com a chave nas mãos, e os cabelos loiros a caírem sobre seu rosto cansado.
Pensou no quanto Rodrigo ficaria feliz por vê-la chegar antecipadamente, e imaginou-se nos braços dele, sentindo-se novamente segura, após todo este terrível dia. Não que fosse uma mulher frágil, longe disso, mas ele sempre passara a ela uma segurança que até então ela desconhecia.

Pôs a chave na fechadura e a girou, e escancarando-a, não pôde acreditar no que seus verdes olhos testemunhavam: Rodrigo copulava violentamente com uma mulher morena, em pleno sofá da sala. Ela estava de costas para ele, com os braços sobre o encosto, e os joelhos apoiados no assento, enquanto ele, atrás dela, apoiava uma das mãos em seus cabelos negros e a outra agarrava a sua cintura. Copulavam? Não, eles não copulavam. Estavam trepando. Pura e simplesmente.

Sem se dar ao trabalho de discutir, deu as costas para ambos, que pararam seu ato para observá-la; a mulher atônita, Rodrigo com a cara mais idiota que ela já vira um homem fazer. Não derramou lágrimas, não gritou, não esperneou, apenas se colocou a descer rapidamente todos os degraus que acabara de subir, e chegou à conclusão que enlouquecera. Ao passar pelo porteiro, este a olhou com pesar, e ela teve certeza absoluta que, se não enlouquecera antes, enlouqueceria em breve. Fez sinal para um táxi, no exato momento que Rodrigo aparecia, ainda sem camisa, no saguão do prédio. Entrou no táxi, sem mais olhar, e quando deu por si, estava sozinha num luxuoso quarto de hotel.

Espalhados pela cama, diversos vestidos e sapatos, ainda com a etiqueta das lojas, e diversas lingeries sensuais. Parado, com ar assustado, na porta do quarto, estava o pobre taxista que a acompanhara durante todo o caminho. Pegou duzentos reais na carteira e entregou ao homem, e antes que ele pudesse dizer algo, fechou a porta, indo diretamente para o banheiro, despindo-se pelo caminho.

Debaixo do chuveiro, enquanto a água quente fustigava as suas costas, permitiu-se derramar as primeiras lágrimas, que se transformaram em um choro convulsivo. Sentou-se no chão, e entregou-se aquele choro, pois ela precisava pôr para fora toda a angústia que sentia. Quando lhe faltaram as lágrimas, levantou-se, terminou o banho, e enrolou-se no roupão, enquanto usava a toalha para secar seus cabelos.

Mirou-se no grande espelho enquanto fazia isso, e, sem saber o porque, despiu-se de maneira sensual, observando seu próprio corpo. O rosto era belo e expressivo. Os olhos eram verdes, felinos. Os cabelos caíam de maneira sedosa por seus ombros, e ela os jogou para trás para examinar seus seios, perfeitamente redondos e de mamilos rosados. Sua pele era alva e sem nenhuma imperfeição, e sentindo-se estranhamente orgulhosa, e encabulada, colocou-se de costas, e observou, satisfeita, que nenhuma estria ou celulite a marcava.

"Tolo idiota. Perdeu a mulher mais foda que já teve", pensou, e assim, nua, começou a se maquiar, enquanto a tarde ia se transformando em noite. Pintou as unhas, escovou os cabelos, perfumou-se. Escolheu a menor e mais sensual das lingeries que comprara, e colocou um vestido preto de alcinhas colante que revelava cada curva de seu corpo. Pegou uma bolsa preta de festa que comprara, o cartão de crédito, algum dinheiro e o batom, e saiu, largando o quarto como estava.

O efeito foi imediato. Assim que saiu do elevador, no saguão do hotel, atraiu a atenção de quase todos os homens que ali se encontravam, e vingativa, ignorou a todos enquanto caminhava com a elegância digna de uma mulher sensual, que consegue ser provocante sem ser vulgar.

A noite estava quente. Não precisou rodar muito de táxi para encontrar um pub, que mais parecia uma boate. Desceu, pagou ao taxista, e sozinha, entrou. Pediu uma tequila, virou, e foi direto para pista de dança, onde tentou exorcizar os seus demônios. E agora, estava aqui, encostada neste maldito balcão, virando tequilas, amaldiçoando cada homem ao mesmo tempo em que desejava que pelo menos um deles a amasse de verdade.

E então, ele se aproximou. Usava uma blusa xadrez, de botões, calça jeans e bota. Não era bonito, sua barba estava por fazer, da mesma maneira que ela o vira na estrada, pela manhã, o que parecia ter sido um século atrás. Seus cabelos, já muito compridos para o gosto dela, estavam bagunçados, e ele passou a mão por eles, numa vã tentativa de ajeitá-los, antes de se dirigir a ela.

-Sophia, não é? - Perguntou ele, com um sorriso a brotar nos lábios. Ela reparou que embora não fosse bonito, possuía um certo charme. Mas lembrou-se da maneira que ele se comportara quando se encontraram, e evitou sorrir de volta, limitando-se a acenar afirmativamente com a cabeça, enquanto ele lhe estendia a mão.

- Matheus. Muito prazer - continuou ele - Não tive chance de me apresentar antes.

Ela deixou a mão descansar na mão dele, e o sorriso dele pareceu aumentar.

- Olha, eu já estou de saída, mas estou indo para uma festa perto daqui. Alguns amigos estarão lá. Gostaria de me acompanhar? Prometo que tem tequila...

Ela preparou-se para recusar, mas algo dentro dela rebelou-se. Sentiu uma grande vontade de gritar um "foda-se" para toda prudência que tivera até aqui. Estava arrasada, e a última coisa que queria era voltar para aquele quarto de hotel e encarar que havia sido traída pelo homem em quem ela depositara toda a sua confiança. Sorriu, e ele pareceu assustar-se com aquilo, e ela ouviu a sua própria voz murmurar um "Por que não?". Tinha certeza que ele também ouvira, pois os olhos dele brilharam de admiração quando ele jogou algumas notas sobre o balcão e a puxou pela mão para fora do pub, para longe daquela música, em direção a noite quente e estrelada.

Caminharam por algumas esquinas, em silêncio, até que pararam em frente a um prédio. Sua fachada era larga, o que sugeria apartamentos grandes, embora ele não fosse tão alto. Uns seis andares, talvez? Podia ouvir o som da música. Ele tocou um botão do interfone, e uma voz de mulher atendeu. Ele disse apenas o seu nome, e o portão abriu-se. Ele o empurrou, e deixou que ela passasse a sua frente, com uma mesura. Ela sorriu, e ambos foram sorrindo até a porta do elevador.

Entraram, e novamente, silêncio quase constrangedor. Ele a olhava, meio fascinado, e ela o olhava abertamente, esperando que ele tomasse alguma iniciativa. Mas nada aconteceu, e eles chegaram até o andar de destino.

Novamente, ele abriu a porta e permitiu que ela passasse. Assim que saiu, ela viu-se em uma imensa sala, ampla, com inúmeras pessoas circulando. A música dominava o ambiente, mas sem incomodar os outros sentidos. Seus olhos passearam pelas pessoas que dançavam, conversavam ou simplesmente seguravam um copo, apreciando a bebida. Pareciam todos ricos e bem sucedidos, e pertencentes a várias etnias. Definitivamente, era uma festa eclética. Sentiu uma mão segurar a sua, e sobressaltou-se, virando-se. Era Matheus.

- Divirta-se. Estarei por aqui...

E afastou-se dela, que se sentiu um pouco desnorteada, mas achou rápido o que queria: Um garçom. Pediu tequila. Virou. Foi para pista de dança. Curtiu a sensação de não ser observada. Outra tequila. Scoundrel Days tocava nos autofalantes, e ela cantou junto enquanto dançava e se deixava levar pela música. Mais uma tequila. A mente vazia, o corpo leve, toda a tensão sendo liberada pelos poros enquanto ela transpirava sem se preocupar com a sua maquiagem. Estava, definitivamente, bêbada.

Estava agora em uma sala, anexa ao salão principal, e conversava alegremente com algumas pessoas. Um deles era um homem pálido, com um olhar sombrio e ameaçador, roupas elegantes, e segurava uma taça com vinho. Próxima a ele, uma mulher de cabelos vermelhos, vestido dourado, decote generoso.

- Bom, Sophia, você compreende o que estamos fazendo aqui? - Perguntou Matheus, que estava ao seu lado, e olhava diretamente para o homem de terno. Havia alguma inimizade entre eles. Coisa de homens, sempre competitivos, pensou ela, enquanto voltava sua atenção para Matheus. - Você não está respondendo por você, mas por toda a sua espécie. A cada 100 anos, pessoas da minha espécie, da sua espécie e da espécie deles se encontram em uma festa como esta. Para rever o acordo. Nada pode ser feito sem a permissão de um de vocês, humanos, e hoje você foi à escolhida para responder pela humanidade. O que me diz?

Ela olhou para ele. Olhou para os outros e sorriu. Até onde entendera, alguns ali protegiam a humanidade. Outros, a caçavam. E os humanos aparentemente ignoravam isso, embora os que os caçassem afirmassem para os que os protegiam que o faziam sempre com o consentimento dos humanos. E parece que dependia dela que isto continuasse. Decidiu entrar de vez naquela brincadeira.

- Bom, - começou ela - Eu acredito que os humanos não mereçam proteção. É sério! Por exemplo... hic... Desculpe, eu bebi um pouco... Mas por exemplo, o que os humanos protegem? Para que servem? Seria bacana se tivesse alguém ameaçando toda a humanidade...- Ela gesticulava, cambaleando, indicando com os braços a dimensão da palavra 'toda'. - Nós teríamos que nos unir, não? Acho que se toda a humanidade tivesse um único inimigo em comum, nós nos veríamos como humanos e nos ajudaríamos... Não é? Por exemplo, não haveriam traições, e ninguém se sentiria sozinho, porque poderíamos contar e realmente confiar uns nos outros... Hic...

- NÃO! SOPHIA, VOCÊ NÃO PODE CONCORDAR COM ELES! - Gritou Matheus, mas o homem de terno apenas o olhou, e ele controlou-se. - Não cabe a eu escolher por você, Sophia. Prossiga...

Ela o olhou com alguma ternura e uma certa pena, e começou a rir daquele jogo. Bom, esta era a opinião dela. Se havia algo que a humanidade precisava, era de um predador, para caçá-los e lembrá-los o motivo pelo qual começaram a viver em sociedade. Pobre Matheus... Parecia desolado pelo fato, mas não se pode proteger a humanidade, porque a humanidade não protege a si mesma! Ele deveria saber disso. Ou não passava de um ingênuo.

- Bom, por mim ok! Quando começo a fugir e a ser perseguida? - Perguntou, segurando uma gargalhada, observando o casal ameaçador.

Entregaram a ela papel e caneta. Ela assinou sem ler. Daí pra frente, tudo ficou muito confuso... Matheus desapareceu da cena, e ela recorda-se vagamente de uma criatura parecida com um urso saltar na direção do homem de terno. Lembra-se da mulher mostrar presas e garras enormes para a criatura, e aí seu mundo girou, ela escorou-se na parede e começou a vomitar.

E agora estava parada na porta do seu hotel, vendo o Jipe de Matheus dobrar a esquina. Sentia-se horrível. Seu estomago estava embrulhado, sua cabeça doía, e ela provavelmente não lembraria de nada desta noite. Mas acima de tudo isso, ela sentia medo. E estava sozinha. Deu as costas para madrugada, indo para o seu quarto. Não podia mais evitar o amanhã.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Escolhas

O toque frio e úmido das pedras sob seus pés descalços, que normalmente a fariam arrepiar-se, passava despercebido pelos seus sentidos entorpecidos enquanto ela caminhava pelo corredor mal iluminado. O odor acre liberado pelas chamas, única fonte de luz do longo corredor, e o som das ondas explodindo em algum lugar acima também eram ignorados, tal qual a presença das duas figuras encapuzadas que a escoltavam e a guiavam por aquele verdadeiro labirinto subterrâneo.

Seus cabelos longos e escuros estavam molhados e salgados, o que provavelmente denunciaria de onde ela vinha. O longo vestido branco, naturalmente transparente, teimava em colar ao seu corpo enquanto caminhava, por estar também molhado, mas aparentemente nenhum dos seus acompanhantes parecia notar.

Enquanto caminhavam, um coro de vozes começara a ser ouvido, entoando algum tipo de canção religiosa em uma língua desconhecida, e a cada passo dado pelos três pelo longo corredor, este se tornava mais largo e o som mais forte. Um vento frio passou por eles, vindo da direção para onde seguiam, e trouxe consigo a lembrança de coisas desagradáveis, antigas e decadentes. E os que acompanhavam-na começaram a cantar.

Entravam agora em um imenso salão, também feito em pedra, onde aproximadamente cinquenta pessoas aguardavam por aquele momento. Estas pessoas estavam dispostas em um grande círculo, e no centro deste, uma escada que levava a um altar nas cores verde e salmão. Sobre o altar, jazia um corpo, mas a distância ainda não permitia definir muita coisa.

Enquanto ela caminhava em meio à multidão, a cantoria cessou, e eles a acompanhavam com os olhos, todos cobertos por seus capuzes esverdeados e puídos. Passo a passo, ela dirigia-se ao altar, alheia a tudo, seus verdes olhos inexpressivos, deixando pequenas poças de água salgada. Um trovão fez-se ouvir no momento em que ela alcançava o começo da escadaria, onde uma pequena mesa decorada com figuras desconhecidas sustentava um punhal com cabo de osso.

Ali, seus dois acompanhantes a fizeram parar, e um deles pegou o pequeno punhal, cortando a própria mão. Levou então a mão cortada à testa dela, tingindo de vermelho a pele alva do rosto perfeito. O sangue escorria pelo rosto, cobrindo também suas pálpebras, mas ela parecia não se importar. Ele entregou então o punhal a ela, e ambos colocaram-se de joelhos, enquanto ela tocava o primeiro degrau com os pés descalços. Sua visão tornara-se rubra e distorcida, e a cada passo, algo gritava desesperadamente dentro dela. Lembranças de algo muito antigo, que ocorrera há tempos distantes, longe deste templo, longe deste lugar, tentavam acordá-la. Mas era em vão. O que eram as suas memórias comparadas com os desejos dos antigos?

Alcançou o segundo degrau. Ela estava agarrada a ele, jovem demais, indefesa demais, e ele, também muito jovem, tentava protegê-la das chamas que rugiam ao seu redor e de algo muito mais perigoso.

Seus pés tocaram o terceiro degrau, e ela novamente em sua cama, debatendo-se em desespero, e acordou gritando, mas antes que pudesse começar a chorar ele passava pela porta de seu quarto, sentava-se na cama e a abraçava, protegendo-a.

No quarto degrau, ela estava em uma rua, à noite, voltando de alguma boate sozinha após as amigas a abandonarem. Uma mão, forte demais para que ela se soltasse, a agarrara e a puxara para dentro de um beco, e antes que ela gritasse uma outra mão tampava a sua boca. Sentia o mau cheiro dele, o fedor de álcool, e a excitação de encontro as suas penas desnudas. Lutou, debateu-se, mas um golpe em sua face a fez tontear, e ele se aproveitou disso para levantar a sua saia e esfregar sua ereção entre as coxas dela. Ela chorava de medo e desespero, mas pôde ouvir o som do vento deslocando-se, seguido do som de algo quebrando, e a pressão sobre ela diminuiu gradativamente, enquanto uma mão, agora protetora, a guiava para longe dali, para segurança do lar.

Quinto degrau. Estavam juntos, ao som de Smashing Pumpkings, dançando feito loucos no apartamento vazio que ela acabara de alugar. Seu primeiro apartamento, e seus únicos bens eram uma geladeira, um colchão, e um som superpotente, que ele dera de presente. E ela estava feliz, e via nos olhos dele sua própria felicidade estampada.

Sexto degrau. Seu último namorado a deixara, abandonando-a completamente. Ele a consolava, e enquanto ela chorava, ele dizia que ia vingá-la, que iria atrás dele, que quebraria seus joelhos, e a acalentava em seus braços.

Sétimo degrau. O último. A lembrança mais dolorosa. O sorriso dele, largo, abundante, iluminado. Bom. Simplesmente bom. O sorriso dele ao vê-la, ao falar com ela, ao contar uma piada ou falar sobre suas longas viagens. Sobre seus amores, sobre seus poucos amigos. O sorriso que iluminava toda a escuridão que sempre a cercou, que servia de farol em meio à tempestade que fôra a sua vida.

Tudo isto se resumia a nada, agora que ela dava os últimos passos que a separavam do altar onde o corpo dele encontrava-se desacordado, sobre inúmeras algas, lulas e outros invertebrados providos de tentáculos. Ela ergueu o punhal, com ambas as mãos, enquanto mirava sua face, ignorando a sua nudez. Os cantos recomeçaram. Um trovão dominou os céus. Suas mãos desceram violentamente, cravando o punhal no peito do homem ali deitado. Ela sacrificara o próprio irmão, e a humanidade estava condenada...

E ela gritava de dor, de tristeza e de remorso, sozinha em seu quarto, despertando de um terrível pesadelo. Transpirava, e seu suor umedecera toda a sua cama, apesar da janela estar aberta, e do vento úmido balançar incessantemente as cortinas. Olhou ao redor, ainda com lágrimas a escorrer pela face, e reconheceu todos os seus bichos de pelúcia. Olhou-se, no espelho colocado na parede oposta, e ainda tinha seus doze anos, e estava no seu quarto, na casa de seus tios. Nada tinha a temer.

Um relâmpago iluminou todo o quarto no momento em que ela colocava-se de pé para fechar a janela, e esta luminosidade revelou um homem sentado em sua cama. Ele estava de terno, e seus cabelos eram loiros e bem cortados. Os olhos amarelos a fitavam, e ele sorriu quando ela se sobressaltou.

"Acalme-se, criança", disse ele, e sua voz era misteriosamente envolvente. Ela acalmou-se, e para a sua surpresa, sentou-se na beirada da cama, observado o estranho. Ele prosseguiu: "As coisas não precisam ser do jeito que você viu. Há uma outra saída. Existe uma escolha. E eu estou aqui para dá-la a você..."

Neste momento, a porta do seu quarto se abriu, e como de costume, seu irmão aparecia, com o olhar preocupado, colocando-se ao lado dela e a abraçando.

O estranho desaparecera, abandonando-a com as suas dúvidas.

"Calma Sarah. Foi só um sonho ruim. Eu estou aqui", disse Arthur, seu irmão.

"E eu também, Sarah", ecoou uma voz envolvente que apenas ela podia ouvir.

sábado, 29 de janeiro de 2011

O Viajante

Seus olhos abriram-se lentamente, enquanto uma mão insistente segurava seu ombro esquerdo e o chacoalhava. Sonolento, levou alguns segundos para recordar-se de onde estava, olhando meio pasmo ao seu redor. Sentiu suas costas doerem, e percebeu que se encontrava em uma posição desconfortável, enquanto olhava para o homem suado, baixo e sorridente, com uma camisa azul estufada na altura do ventre, que tocava seu ombro e o acordava. Era o motorista do ônibus.

- Hei, amigo, chegamos! Última parada!

Aquelas palavras ecoaram de maneira estranha para ele, que sorriu para o homem, agradecendo. Lançou um último olhar pela janela a sua direita, espreguiçando-se, e gostou do que viu. Estava em uma rodoviária pequena, onde seu ônibus era o único estacionado. Estava limpa, muito mais do que ele esperava que uma rodoviária de cidade pequena pudesse estar. Dali podia ver uma praça gramada e arborizada, com um pequeno coreto. Além do coreto, ainda na mesma praça, estava uma construção antiga, mas muitíssimo bem conservada, com suas paredes na cor salmão, e pilares romanos brancos em sua entrada.

Levantou-se. Estava com a boca seca, e acreditava que seus cabelos e todo o seu rosto estavam amarrotados. Passou a mão por eles, sentindo a oleosidade dos mesmos. Precisava de um banho. E de uma boa refeição. E com o intuito de providenciar ao menos uma destas coisas, colocou a sua mochila cargueira nas costas, e desceu do ônibus, desejando boa viagem e boa sorte para o motorista.

O sol estava extremamente luminoso, embora a temperatura estivesse agradável. Demorou-se, parado, enquanto seus olhos se acostumavam com a claridade, e caminhou em direção a praça, que ficava na calçada oposta. Rumou a passos largos, ouvindo o som de suas botas em contato com o chão da rua irregular, feita em paralelepípedos, misturar-se com a voz das crianças que brincavam na rua transversal a que ele atravessara, a sua direita. Caminhou pela grama verde da praça, em direção ao pequeno coreto, e percebeu que o olhar dos jovens casais, grupos de amigos e idosos era direcionado a ele. Sentiu um certo embaraço, pois apesar de sua aparente extroversão, era tímido. Principalmente quando se tratava de pessoas que ele não conhecia.

Enquanto olhava para as pessoas da praça, não percebeu a aproximação de uma garota, que agora andava ao seu lado. Estacou momentaneamente, olhando-a com ar incrédulo, tentando compreender o motivo dela estar acompanhando seus passos. Ela também parou, e olhou-o com uma expressão curiosa. E sorriu.

Ele percebeu que seus olhos eram de cores diferentes, o direito azul, e o esquerdo verde, mas achou prudente não fitá-los por muito tempo. Sua pele era branca, um pouco rosada devido ao sol. Seus cabelos tinham uma tonalidade avermelhada, mas ele não pôde precisar a cor, uma vez que em alguns locais era mais escuro, e em outros, mais claro. Mas tinha certeza de que eram curtos, e mal tocavam a nuca nas partes em que era mais longo. Ela era bem mais baixa que ele, que a olhava do alto dos seus 1,80m, embora ele tivesse a impressão de que ela poderia acabar com ele a qualquer momento. E usava roupas estranhas e incomuns. Um par de botas de cano alto, um short jeans curto, uma camiseta com listras verticais multicoloridas que o faziam lembrar do sinal de barras que apareciam na tv quando um canal saía de ar, e por cima disso, um paletó. Roxo.

Parecia que ela também o avaliava, mas com um sorriso no rosto. Quando pareceu satisfeita, falou com a voz mais estranha que ele já ouvira, embora não deixasse de ser uma voz bonita e poderosa.

- Você nem sabe onde está, não é mesmo?

Ele balançou a cabeça de um lado a outro, vagarosamente, indicando que ela estava certa.

- Sabe ao menos porque está aqui?

Ele novamente balançou a cabeça. Percebeu que estava de boca aberta, e tratou de fechá-la.

- Vem, me segue. Vou te apresentar a cidade, e providenciar para você um lugar para comer. E outro para tomar banho...

Disse, franzindo o nariz enquanto andava a sua frente.

- E não olhe para minha bunda, ok?

Acrescentou sem olhar para trás, mas ele sabia que era um aviso sério e que não deveria mesmo olhar. Sentiu-se idiota por estar seguindo aquela menina, mas algo dentro dele dizia que era exatamente isto que devia fazer. Caminhou por algumas ruas, e foi guiado para uma pequena pensão. No caminho, percebeu que as pessoas acenavam discretamente para ela, e o seguiam com o olhar. Depois, percebeu que o leve aceno era na verdade para ele, e que as pessoas o olhavam com um misto de curiosidade, admiração e medo. Estava tudo muito, muito estranho.

Dentro da pequena pensão, foi recebido pela proprietária, uma senhora com um vestido florido, um pouco acima do peso, que aparentava estar na casa dos 40 anos, e por mais duas meninas, com aparentemente 16, 17 anos, provavelmente funcionárias. Elas não olhavam para ele, e ele constatou que elas não eram atraentes. Tinham o jeito acanhado que a maioria das meninas do interior possuí, embora a de cabelos pretos já apresentasse curvas promissoras. A loira não passava de uma criança desenvolvida.

Foi prontamente atendido. Alugou um quarto, sem nem ao menos questionar o valor, e dirigiu-se para ele, que ficava no segundo andar, e enquanto subia as escadas, percebeu que a menina de olhos desiguais o acompanhava. Enquanto abria a porta questionava-se se ela realmente tinha a intenção de entrar, e sua pergunta foi respondida assim que ele terminou de abri-la, pois ela passou a sua frente e atirou-se na cama. Ele fechou a porta atrás de si, temeroso, e colocou a pesada mochila no chão, ainda encarando-a.

- Você não vai tomar banho? Sério, está realmente precisando...

Ele não se deu ao trabalho de responder. Pegou a sua mochila, e entrou no banheiro, trancando a porta ao passar por ela. Virou-se, e deu de frente com a sua imagem refletida no espelho. Sua barba estava por fazer. Seu rosto estava magro, e sua blusa preta estava empapada de suor. Seus cabelos negros, com muitos fios brancos, estavam oleosos e com aspecto sujo. Ele realmente precisava de um banho.

Livrou-se de suas roupas, atirando-as ao chão de qualquer jeito, e perguntou-se novamente o que estava fazendo ali. Sem conseguir achar uma resposta plausível, abriu o chuveiro, e deixou que a água levasse embora tanto a sujeira quanto as preocupações que o assolavam. Se era pra acontecer algo inesperado, que acontecesse. Não era a toa que ele estava com uma mochila, contendo todas as roupas que ele pôde carregar. Também não era por acaso que acordara em uma cidade que ele não conhecia, da qual ele sequer sabia o nome. Já que estava aqui, seguiria até o fim.

Saiu do banheiro sentindo-se renovado. Usava agora uma calça cargo preta, com muitos bolsos, e uma das suas inúmeras blusas pretas, e decidiu abrir mão de sua bota, calçando chinelos confortáveis que trazia em sua mochila. Ela ainda estava sobre a cama, e agora o olhava, parecendo satisfeita.

- Não vai fazer a barba?

Ele fez novamente que não com a cabeça. Não tinha coragem de falar, pois sua voz pareceria insignificante diante da dela, e porque as palavras eram desnecessárias até o momento. Ela sorriu, levantou-se, e encaminhou-se para porta.

Ao chegarem no andar térreo, onde ficavam as mesas para o restaurante, o cheiro de comida caseira dominou todos os seus sentidos. Seu estômago dominou os outros órgãos. Ele estava derrotadamente faminto, e parecendo adivinhar isto, sem que ele pedisse, a proprietária serviu-o. Ele devorava a sua comida, e apenas percebeu que sua companheira não comera nada quando terminou. Levantou-se, agradecendo a proprietária, e quando questionou sobre o valor, ela sorriu nervosa para ele, e com o olhar esperançoso, disse que era por conta da casa. Ele ia discutir, mas a menina dos cabelos curtos e avermelhados o pegou pelo braço e o fez segui-la, sob o olhar atento das funcionárias da pensão.

Ele caminhou com ela por diversos locais da pequena cidade. Na verdade, ele descobriu que não passava de um vilarejo, onde o principal meio de transporte era a bicicleta, onde carros eram raros, onde todas as pessoas se conheciam pelo nome. E ele foi apresentado a cada uma delas, enquanto andavam em direção a praça principal, aquela que ele vira pela janela do ônibus quando chegara. Atravessaram o gramado, e também o coreto, e rumaram para o prédio antigo, bem conservado, da cor salmão com pilastras brancas. Ao chegarem, ele percebeu que era muito mais alto do que ele imaginara, uma construção totalmente desproporcional a cidade na qual se encontrava. Embora ele pudesse ter três andares separados em seu interior, ao passar pelas portas duplas, ele saiu em um único salão redondo, iluminado por uma clarabóia no teto e por vitrais em suas paredes altas. Por toda a extensão das paredes, livros e mais livros. Ele estava em uma única e imensa biblioteca.

Olhou para trás, e viu que pelo menos metade da população da cidade estava do lado de fora, observando-o, enquanto ela o fazia avançar pelo salão. Seus passos ecoavam, enquanto os dela não faziam o menor ruído. Atravessaram inteiramente a biblioteca, em silêncio respeitoso, e saíram em um jardim, totalmente coberto por parreiras colocadas a cinco metros de altura. Cercas vivas serviam como paredes, e isolavam aquele recinto do mundo exterior. Estátuas de mármore estavam espalhadas por ali, e um pequeno riacho cortava paisagem, com uma ponte de madeira a atravessá-lo. E no meio de tudo isso, uma grande cadeira, quase um trono, e uma mesa, sobre o qual encontrava-se o maior livro que ele já vira. Ele estava aberto, e suas folhas estavam em branco. Ao lado do livro, um tinteiro.

Ele ficou de frente para ela ao chegarem à mesa, e antes que pudesse perguntar onde estavam, ela estendeu uma pena branca em sua direção. Ele hesitou.

- Meu irmão me pediu para trazê-lo até aqui, embora ele quisesse ter vindo, mas foi impedido por outros assuntos. Então, em nome dele, eu te pergunto: Gostarias de ser o Escritor de Sonhos?

Primeiro, ele achou que fosse algum tipo de brincadeira, mas percebeu imediatamente que não era. Então, foi assalto pelo pavor, e todo o seu corpo começou a tremer. Não, ele não queria ter esta responsabilidade, ele sequer era um escritor de verdade! Tentou gritar que ela estava errada, que ele não era a pessoa certa, que tudo era um grande engano, mas apenas balbuciou palavras sem sentido. Ela preocupou-se, e colocou ambas as mãos em seus ombros, enquanto dizia em tom tranqüilizador:

- Calma! Você não será o escritor de todos os Sonhos! Apenas responderá pelos sonhos dos moradores desta cidadela! Ou acha que meu irmão realmente colocaria você em um cargo acima de sua capacidade? Claro, com o passar dos anos, você provavelmente vai subir de posto, mas isso leva tempo, e até lá...

Ele não estava mais prestando atenção. Descobriu o que afligia as pessoas daquela cidade. Elas não sonhavam! Nenhuma delas possuía sonhos! Era por este motivo que todos o olhavam, e provavelmente era por isto que estava ali! Eles contavam com ele para aquela função!

Ela havia parado de falar, e o olhava. Ele pegou a pena de suas mãos. "Hei, amigo, chegamos! Última parada!" As palavras ecoaram em sua cabeça. Ele sentou-se na grande cadeira, e mergulhou a ponta da pena no tinteiro. Ela desapareceu em pleno ar, lançando para ele uma piscadela e um olhar insano. Lá fora, as pessoas se abraçavam, comovidas. Elas sonhariam esta noite.



Natalia Bemfeito, este conto é seu e apenas seu. Espero que aprecie o presente.

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Jovens e Antigos

As chamas consumiam tudo o que ele conquistara ao longo de sua vida com uma velocidade formidável. Parado, em pé, no meio da sua sala, ele observava a decoração ao seu redor ir derretendo vagarosamente, recordando-se das histórias que vivera ali. Das noites insones no sofá branco, de três lugares, que ele considerava mais confortável que sua própria cama. Do vento quente que invadia sua casa, no meio da madrugada, fazendo com que a cortina escarlate dançasse e trouxesse a sua memória as noites que passara com ela.

A Tv, eletrodoméstico favorito de seus filhos, e o menos apreciado por ele. A estante, de mogno, onde jaziam livros que um dia pertenceram a ela. O dvd, o rádio, a sua coleção de filmes, seu imenso acervo de cds, tudo estava sendo irremediavelmente destruído. E ele permanecia parado, alheio ao calor que as chamas emanavam, ao apelo silencioso de seu corpo, observando com total desapego. Seus olhos, marejados por lágrimas provocadas pela fumaça densa e negra que forrava o teto e que continuava a se expandir, concentraram-se em seus pés, descalços e alvos, e ele observou, de relance, que ainda segurava faca.

Tudo começou, e ele agora tinha certeza disso, depois que ela o deixara. Ele dedicara toda a sua vida a ela, e ela se fora, e ele não suportara isto, e a culpou. Mas mais do que isso, ele culpou a si mesmo. Acreditava não ter feito o suficiente para que ela ficasse, e com esta crença veio a depressão. Ele entregou-se prazerosamente a ela, abdicando de sua vida social, de seu trabalho, e até mesmo de seus filhos. Negligenciou por completo as suas responsabilidades, e por consequência disto, seu melhor amigo decidiu agir. Mais pelas crianças do que pelo afeto que ainda nutria por ele, uma vez que ele deixara de ser a pessoa que era.

Foi internado. Seu amigo ficou com a custódia temporária das crianças, e se ele pudesse escolher, se tivesse condições, teria feito esta opção. Seus irmãos estavam ocupados demais, vivendo suas próprias vidas, e não se opuseram. Seus pais eram falecidos, e nada poderiam ter feito. Então sobrara a Erick a responsabilidade de cuidar delas.

Recuperou-se do trauma em uma clínica psiquiátrica. Sonhava com ela todas as noites, mas em seus sonhos ela sempre aparecia como fôra em vida, e nunca como o cadáver desfigurado que ele foi obrigado a reconhecer (ou quase nunca). Nos sonhos, ela sempre estava com os cabelos negros soltos e perfumados, e seus olhos esmeraldas reluziam. Mas sua expressão o condenava. Ela o culpava pelo que acontecera, e ele sabia disso. Haviam discutido minutos antes dela sair de casa, magoada, chorando. Minutos antes do acidente.

Com a ajuda dos medicamentos e dos tratamentos administrados, os sonhos diminuíram em freqüência, mas aumentaram em intensidade e realismo. Agora, quando ele sonhava, podia ouvir a voz de Raquel. E ela continuava a acusá-lo, dizendo que o amava, e que por culpa dele estavam separados. Tentou o suicídio por duas vezes, mas em ambas foi socorrido pelos enfermeiros.

No final de seis meses os sonhos cessaram. Escreveu cartas para os antigos amigos e parentes, e cartas a Erick. Voltou a se interessar por seus filhos, e a cada informação obtida sobre eles, o remorso por ter sido um fraco o assolava, mas a lembrança do sorriso de Arthur, seu primogênito, e do olhar franco de Sarah, sua caçula, fazia com que ele recobrasse a força para lutar e o desejo de viver. Por fim, recebeu alta, e após algumas semanas, com a ajuda de amigos, conseguiu casa e emprego. E após um ano, estava novamente estabilizado, morando com seus filhos, perfeitamente são e feliz.

Três anos se passaram, e ele decidiu mudar de ares. Não por não gostar de sua cidade, ou por estar preocupado com a crescente onda de violência, mas porque os seus sonhos estavam retornando. Agora, ela sempre aparecia envolta em uma luminosidade esverdeada, fantasmagórica e sufocante. E não mais o acusava. Alertava-o. Dizia que as crianças seriam a sua ruína, que deveria se livrar delas. Que deveria matá-las. E depois sua fala tornava-se incompreensível, um misto de urros e gritos. Associou os sonhos ao fato de que, voltando a sua vida normal, com os mesmos amigos de sempre, estava perigosamente próximo ao seu passado. Era difícil passar pelos locais onde estivera com ela sem ser assaltado pela lembrança. Por isso, escolheu uma cidade litorânea. Ela detestava praias, e temia o mar.

Mudou-se, arrumou emprego, e foi bem sucedido. Com o dinheiro que acumulara com seu trabalho somado ao seguro que ela deixara, que ele até então não havia tido coragem de gastar, comprou uma ampla casa, mobiliou, e matriculou as crianças em uma ótima escola. A melhor da pequena cidade onde vivia. Sarah tinha agora seis anos de idade, e estava cruelmente parecida com a sua mãe. Suas expressões faciais e seus olhares sempre o faziam se lembrar dela, assim como seu jeito distante e sonhador. Arthur, com nove, tinha o sorriso sincero e cativante que encantaria todas as moças em breve, e era mais realista e mais forte do que ele jamais fôra em toda a sua vida. Era a miniatura de um grande homem.

Inicialmente, a mudança surtira efeito. Passou a caminhar na praia, a participar mais da vida das crianças, mas sempre que as observava dormindo, a voz de Raquel voltava a sua cabeça. E os sonhos retornaram.

Toda a aparente melhora que ele conseguira no primeiro mês desaparecera nas últimas semanas. Conseguiu uma licença do trabalho. Passava os dias trancado em seu quarto, pensando em Raquel e no quanto eles haviam sido felizes, e a noite ele caminhava na praia. E lembrou-se que discutiram por causa das crianças. Agora, tanto Sarah quanto Arthur eram ignorados por ele. Contratou uma empregada para cuidar das crianças e das tarefas domésticas, apenas para poder dormir e passar mais tempo com seu grande amor. Ela ainda aparecia envolta em sua luz esverdeada, e sua pele agora possuía um aspecto doentio, mas ele sentia que estava finalmente enchergando-a como ela era, em toda a sua beleza.

E então aconteceu. Ele estava dormindo, e usava apenas uma samba-canção azul. As janelas do seu quarto estavam abertas, e o luar o iluminava, conferindo uma aparência quimérica ao ambiente. E ela apareceu. Disse-lhe que era o seu último sonho, e que era chegada a hora dele agir. Era chegada a hora de assassinar as crianças. Ele observou-a calado. Ela irradiava sua aura esverdeada e doentia, sua pele estava escamosa e um cheiro de podridão a cercava. Insetos moviam-se pelo seu corpo, ora descendo por seus cabelos negros e sujos, ora aparecendo pelo decote do vestido de festa velho e pútrido que ela utilizava. E ele a achava deslumbrante.

Ele decidiu perguntar o motivo. Ela estendeu a mão pegajosa em sua direção, e ele a tocou.

Estavam em uma praia. Era e não era a mesma praia por onde ele caminhava a noite. O som do mar chocando-se contra a areia estava abafado, e a espuma que chegava aos seus pés era vermelha. Olhando ao redor, pôde ver peixes e aves mortos por toda a extensão de areia, e longe, sobre as águas, em pé, estava um casal nu. Ele concentrou-se neles, e sem dificuldade, os distinguiu. O Sorriso Cativante, e ao seu lado, o Olhar Sonhador. E atrás deles, imenso, colossal, inimaginável, erguia-se uma criatura. Ela vinha das profundezas dos oceanos, dos piores pesadelos, dos maiores temores. Ela era feita de puro desespero, e seu poder era tamanho que ele não pode desviar seus olhos, ou pensar, ou agir, ou sentir. Estava vazio. E a voz dela o preencheu: "Eles pertencem aos Antigos. Você deve matá-los. E eu vou ajudar".

Ele acordou suando e chorando, ainda com a visão aterradora em sua mente, e correu, em fúria, até o quarto das crianças. Escancarou a porta e saltou sobre as camas, gritando, as mãos curvadas como garras, mas atingiu apenas cobertas e travesseiros e bichos de pelúcia. Ergueu-se, seus negros cabelos caídos sobre o rosto magro e marcado, varrendo a escuridão com seus olhos insanos. Nada encontrou, e correu pelos aposentos, tropeçando na tomada do pequeno abajur do quarto das crianças, fazendo com que o mesmo caísse soltando faíscas. Talvez isso tenha começado o incêndio.

Em sua procura insana, passou pela cozinha, agarrando a maior faca que encontrara. As chamas começavam a destruir o quarto das crianças, podia ouvir o crepitar e sentir o cheiro de queimado. Caminhou, agora lentamente, em direção a sala, de onde vinha um fraco choro. Reconheceu a voz de sua filha, e sentiu o ódio crescer dentro dele. Exterminaria as crias daquela criatura, faria a sua parte, salvaria sua mulher. Destruiria os monstrinhos.

Entrou na sala, acompanhado das chamas, e os viu sentados no chão, encolhidos, Sarah com o rosto escondido contra o peito de Arthur, soluçando alto. Arthur estava com os braços ao redor dela, protegendo-a, mas com os olhos arregalados, e ele alimentou-se do pavor que viu no olhar de seu próprio filho. Olhou ao redor. Ele ainda segurava a faca.

A explosão foi intensa e iluminou toda a noite da pequena cidade. Casas ao redor foram atingidas, e os bombeiros tiveram que trabalhar arduamente durante toda a madrugada e o dia seguinte para resgatar as vítimas do incêndio que afetou todo o luxuoso condomínio.

Nos escombros, um homem foi encontrado morto, com uma faca cravada em seu peito.



Dedicado a Karine, por me incentivar, Renata, por compartilhar a fascinação por Lovecraft, a Andréa, por me ajudar, e ao Wallace, por me ensinar a ter medo dos Old Ones.