Era o que ela se perguntava toda sexta, antes de dar de ombros e começar a se produzir. Não fazia a mínima idéia do que estava procurando, do que exatamente esperar, e isto causavam nela uma inexplicável frustração quando a manhã de sábado vinha e ela se dava conta de que não havia encontrado o que procurava. Mas não importava. Não muito. Ao final de cada semana, sempre haveria mais uma sexta, e a mesma sensação retornaria para motivá-la a sair e procurar. E sem pensar nisso, continuava a passar o lápis preto ao redor dos olhos, enquanto a voz de Nina Persson se espalhava pelo seu quarto, confessando que estava perdendo em seu jogo favorito...
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Não sem alguma dificuldade, ele calçou a bota marrom do pé direito, e ergueu-se. Do alto dos seus 2,05m de altura, olhou-se no espelho que preenchia toda a parede do seu quarto, avaliando a combinação que ele chamava de “lenhador canadense”: Botas, calça jeans, blusa branca, blusão flanelado xadrez vermelho e branco aberto por cima. Some a isso a vasta cabeleira ruiva, desta vez presa em um rabo de cavalo, a barba por fazer, e os seus 120 quilogramas, que faziam dele um verdadeiro gigante diante dos padrões normais. Aprovou a combinação, e sorriu ao perceber que Ville Vallo começara a cantar os primeiros versos de ‘And Love Said No’.
“And love’s light blue… led me to you…” cantarolava, enquanto pegava sua carteira e seu telefone celular, colocando-os nos bolsos. Alcançou o controle remoto do som, desligou-o, e ainda cantando a música, saiu do apartamento em direção ao elevador. Sentia-se bem, sentia-se vivo, e sabia que aquela letra estava certa. Estava sendo guiado diretamente para ela, como todas as outras vezes. Era doentio, ele sabia. Loucura talvez. Mas não podia evitar, e tal qual mariposa atraída pela chama, ele voava novamente em direção ao sofrimento. E com um sorriso no rosto.
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Ela desceu do ônibus atraindo todos os olhares masculinos... E alguns femininos, e sabia disso tão bem quanto sabia que não era linda. Estava longe de ser feia, mas o que realmente atraía era a sensualidade que ela exalava, especialmente nas noites de sexta. Algo dentro dela despertava, uma espécie de instinto primitivo que a transformava em um misto de fera e deusa antiga. Feminilidade ao extremo, com a completa consciência a respeito deste estado de graça. Cabelos castanhos soltos, perfume marcante, sorriso provocante, minissaia, meia arrastão, botas. A liberdade que só pode desfrutar quem tem a ciência de seu próprio poder.
Atravessou a rua, começando o seu tradicional ritual semanal, procurando por rostos conhecidos, enchendo de esperanças os estranhos em quem sustentava o olhar por mais de um segundo. Seguia em passos leves, em meio às motos que começavam a chegar. Sorria e acenava sempre que via uma face familiar, e de onde estava já podia ouvir o som da bateria, das guitarras distorcidas, e das vozes cantando em coro. Passou pelas mesas do lado de fora, colocadas na calçada, fazendo uma leve busca por algum conhecido, mas com pouca esperança, pois seus amigos ficavam lá dentro, onde o som era mais alto. Sorriu ainda mais ao vê-los, e foi juntar-se a eles.
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Ele chegou cedo, pegou uma mesa e a primeira Heineken da noite. Serviu-se, acendeu um cigarro, deu um gole em sua cerveja e esperou. Sabia que, mais cedo ou mais tarde, ela passaria por ali. Ela sempre passava, todas as sextas, nas últimas doze semanas, e ele estava sempre ali, esperando por ela. Desde a primeira vez que a viu, ele sabia que era ela. A viu dançando, bebendo, sorrindo e chorando. A viu inclusive com outros homens, mas nenhum deles ficou com ela por duas sextas consecutivas. Ele sabia que ela estava procurando, e que era apenas uma questão de tempo para que ela o encontrasse assim como ele a encontrou. E então, o mundo passaria a ter sentido, e ele se sentiria completo.
Alguns conhecidos passavam por ele e acenavam, cumprimentavam, tocavam-lhe os ombros, mas nenhum ficava em sua mesa. A sua vigília era solitária, e muitas vezes entediante. Fumava um cigarro após o outro, e perdia-se em goles de cerveja e canções.
“Shot through the heart and you're to blame
You give love a bad name…”
Ela acabara de chegar, e ele acompanhava hipnotizado o caminhar dela. Estava ainda mais linda do que ele era capaz de se lembrar, e apesar da distância, ele teve a impressão de capturar seu perfume e apreciá-lo em pleno ar, em meio à fumaça de seus próprios cigarros. Ela caminhava em sua direção, enquanto olhava ao redor, fazendo seu tradicional reconhecimento. Acenava, sorria, e ele apenas a admirava, esperando que aqueles olhares e sorrisos fossem dedicados a ele antes que a noite terminasse. Bebeu novamente a sua cerveja, para resfriar o corpo que começava a esquentar de maneira abrupta. Percebeu que estava tremendo, e sentiu-se um idiota miserável e covarde, mas tudo isto perdeu o sentido quando ele percebeu que ela estava olhando diretamente para ele, e sorrindo. Tentou esboçar alguma reação, sorrir de volta, mas era tarde demais. Ela já olhava em outra direção, e caminhando da mesma maneira sublime que chegara, entrou no bar, deixando-o do lado de fora, encharcado em suor.
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Seus pés e pernas doíam de tanto dançar, e a sua maquiagem feita com tanta dedicação estava agora desfeita pelo suor. Sorria, dançava e bebia, e cada uma destas coisas ela fazia sem nenhuma moderação. Estava alta já, apoiava-se nos amigos, falava aos berros, e tinha vontade de abraçar o mundo se isso fosse possível... E porque não era? Esta noite era dela, e tudo era possível. E esta noite era tão dela que decidira terminá-la sozinha, e dispensou cada um dos muitos pretendentes que se aproximaram, alguns com alguma simpatia, outros com total desprezo. Ela era única e especial esta noite, e não desperdiçaria esta sensação em troca de nenhum prazer carnal que algum homem pudesse proporcionar. Poderia tê-los quando bem entendesse.
Quando She Sells Sanctuary explodiu nos alto falantes, ela decidiu que era hora de ir. Olhou ao redor, tentou encontrar alguém com quem quisesse compartilhar o final daquela noite especial, e descobriu que estava muito melhor sozinha. Não aceitaria dividir o que estava sentindo com ninguém. Saiu do bar, sem se despedir, e cambaleando levemente pôs-se a caminho do seu ponto de ônibus, a algumas quadras dali. Ainda sorria, e sentia-se completamente feliz.
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Ele já havia passado da décima cerveja quando a viu sair do bar, cambaleando, e não pode evitar sorrir. Saudou-a de longe, quando ela já estava de costas, erguendo o copo de cerveja, mas seu sorriso desapareceu no momento em que percebeu os três homens que saiam do bar logo atrás dela. Havia algo de estranho, e ele sentia isso na pele, literalmente. Arrepiou-se por completo, e sentiu que estava novamente tremendo. Largou o dinheiro na mesa, e levantou-se, percebendo que bebera um pouco além da conta. Mas não importava.
Transpirava muito, e esforçava-se para não ser notado, o que era não é muito simples quando se é um gigante ruivo de mais de dois metros de altura. Mantinha uma distância considerável, pois não queria arrumar nenhuma confusão desnecessária, mas também não queria deixá-la desamparada caso algo acontecesse. Na verdade, mal conseguia imaginar o que seria capaz de fazer caso algo acontecesse, pois só de cogitar esta hipótese sentia todo o seu corpo tremer. Avançou na escuridão da noite, enquanto ao fundo ouvia Ian Astbury cantar que o mundo dava voltas e o arrastava para baixo.
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Ela estava perdida em seus pensamentos quando o trovão estourou nos céus, dando início a uma chuva inesperada. Sorriu, feliz até com a chuva que caia e que resfriava seu corpo, mas sua felicidade transformou-se em horror ao perceber que fortes mãos a agarravam e a jogavam para uma rua transversal a qual estava, com pouca iluminação. Abriu a boca para gritar, mas um punho acertou a sua face, calando-a e atirando-a ao chão. Percebeu que eram três homens, e todos haviam tentado agarrá-la no bar em que estava. Lembrou-se especialmente de um, que ela teve que morder para se soltar. Eles a ameaçavam e sorriam, e deixavam transparecer a embriaguez na qual se encontravam.
Ela não tinha outra saída. Ergueu-se, e deu as costas, tentando correr, mas sentiu mãos agarrando-a pelos cabelos e a arremessando contra o muro da casa próxima. Tentou gritar, mas dedos suados invadiram a sua boca impedindo-a, enquanto outras mãos já invadiam a privacidade das suas roupas e apertavam com força o seu corpo. Ela começou a chorar, em desespero, sem perceber que a escuridão crescia ao seu redor, e que mais alguém estava ali.
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Ele observou os homens agarrarem os braços alvos que foram destinados a abraçá-lo, e jogarem o corpo perfeito e sempre desejado por ele para a rua escura. Viu quando um deles desferiu um soco no rosto angelical que ele um dia passaria os dias a beijar, e todo o seu corpo, que já tremia, começou a coçar. Estava chovendo, mas ele não percebia, pois todo o seu corpo já estava molhado em suor. Tentou correr na direção deles, mas foi tomado por uma dor incapacitante, sentindo que cada um dos seus músculos se contraia violentamente. Seus ossos estalavam, e ele prostrou-se, ouvindo a sua própria mandíbula deslocando-se, e sentiu o peculiar gosto do sangue dominar seu paladar. Ouviu o som de tecido rasgando, e nada mais importava, apenas libertar a fúria que estava sentindo.
Ergue-se, e estava agora muito maior e muito mais pesado do que já era. Correu, e percebeu que babava e arfava, e que de suas mãos cresciam garras e que de todo o seu corpo cresciam pêlos. Aproximava-se a uma velocidade vertiginosa, e sentiu um prazer inenarrável quando suas garras estraçalharam o pescoço do primeiro homem quando ele agarrou-o pela nuca. Antes que os outros dois pudessem compreender o que estava acontecendo, ouviu um rosnado que partia de sua própria boca enquanto arremessava o corpo sem vida que segurava com mão direita para longe, e as garras da sua mão esquerda penetraram junto com a sua mão e parte do punho no abdômen do segundo agressor. O terceiro o olhava aterrorizado, mas antes que pudesse gritar, ele o mordeu no pescoço e desabou todo o peso do seu imenso corpo sobre ele, liberando uma fúria que até então não sabia que poderia existir. Rasgou com seus caninos, e estraçalhou com os molares cada um dos ossos que ofereciam resistência, rosnando e arfando no processo. Sentia-se feliz. Salvara a sua amada.
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Foi tudo muito rápido, e ela teve certeza de que estava louca. Chorava e tentava brigar pela sua integridade física, com os olhos fechados e mordendo os dedos que ainda trancavam a sua boca, quando percebeu que a pressão das mãos sobre seu corpo cessou. Abriu um dos olhos no mesmo instante em que seus ouvidos captaram o mais terrível e assustador som que já ouvira na vida, algo que nenhuma mente civilizada consegue ser capaz de conceber, uma espécie de rosnado capaz de despertar cada um dos seus mais profundos temores. E não pôde acreditar no que viu.
Uma criatura totalmente coberta por pêlos negros, com quase três metros de altura, com a cabeça que lembrava um imenso lobo, arremessava o corpo inerte de um dos seus atacantes para longe como se ele fosse um mero boneco de pano. E então, em um ataque de pura selvageria, destruiu cada um dos outros homens, mordendo, rasgando, tal qual um predador com uma presa recém-abatida. E ela não conseguia gritar. Sabia que deveria fugir, que deveria correr, que seria a próxima a ser devorada, mas seu corpo não reagia. Algo foi desligado dentro dela, e inerte, ela observou a carnificina.
Depois do que pareceu ser uma eternidade, a criatura abandonou o que sobrara do último homem, e aproximou-se dela. Encolheu-se como podia, tremendo, e a criatura aproximou o enorme focinho de seus cabelos, e cheirou-a. Então, apoiou a imensa cabeça sobre a dela, e emitiu algo que poderia ser um ganido, antes de se afastar. Percebeu então que a criatura a olhava, e pela primeira vez, sabia que estaria segura. Era o mesmo olhar que um cão é capaz de lançar ao seu dono, um misto de cumplicidade e adoração. Ela moveu a mão na direção da criatura, mas o monstro começou a tremer convulsivamente, ganiu, e ao som de ossos estalando, transformou-se em um imenso cachorro, olhando para a rua de onde ela viera. Ouviu vozes, e ela também olhou na direção da rua.
Ao olhar novamente, viu-se sozinha.
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ResponderExcluirNão julgue o livro pela capa...tinha razão! Me perdi imaginando a habitualidade dos acontecimentos iniciais para me encontrar na excitação do meio ao fim! Parabéns!
ResponderExcluirFodaaa!!!
ResponderExcluirCara, o conto já começa bem, intrigante. Eu vou lendo e pensando: Flerte, Rock 'n Roll, Heinekein... tá aí uma receita infalível pra qualquer sexta feira perfeita.
Daí o conto continua e indica que haverá uma ação heroica logo adiante... melhor ainda!
Então, do nada: "Ouviu o som de tecido rasgando, e nada mais importava, apenas libertar a fúria que estava sentindo."
WTF????
Muito fodaaa!!!
Putz! Esse seu conto ficou muito excelente! Vale um livro! Ou pelo menos mais alguns contos de continuação!
Você demorou, mas quebrou tudo nessa atualização do seu blog!
Parabéns!
Voltou com tudo, amei! Imprevisível, como sempre. Seus contos dão friozinho na barriga e tudo, uma maravilha. Os Astros te abençoaram: imaginação sensível do ascendente e lua em peixes somado ao toque observador e sensual do Escorpião, resultam nessas delícias que adoramos ler!
ResponderExcluirComo não poderia deixar de ser, invitável brincadeirinha. Essa fidelidade canina do desfecho me lembrou o lobinho do crepúsculo, hahaha! Ai de você se não fosse o clima rock n' roll, as cervejas, e o cara não fosse um ruivão de 2m de altura... Zoações à parte, sua abordagem foi bem menos teen, rs, o arquétipo do cão companheiro e amigo, que ama incondicionalmente, defende e espera pacientemente, foi transmutado perfeitamente prá personalidade do ruivão!
Mais um, mais um! Prá semana que vem hein, rsrs....
Beijos!