quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Memórias

Estava sentado em seu quarto, com as luzes apagadas, mexendo lentamente o gelo do copo com um dedo, sem perceber que a muito seu uísque barato tornara-se pura água num copo vazio. Relia o e-mail, ainda com os olhos vermelhos que denunciavam noites insônes, álcool, tabaco, e alguma tristeza. Sua palidez era quase doentia, e contrastava com as profundas olheiras acinzentadas que depositaram-se sobre seus castanhos olhos. Cabelos revoltos demonstravam o total desleixo com a aparência, enquanto os copos e talheres e garrafas e filtros de cigarros largados ao redor do monitor indicavam decadência. Fechou novamente o e-mail, e ignorou a foto que ilustrava dias melhores em seu monitor, levantando-se trôpego da cadeira e saindo do quarto, novamente ouvindo as palavras escritas ganharem eco em seus pensamentos. Passou pela sala, chutando as roupas largadas pelo chão junto a livros inacabados, cacos de cds e uma ou duas caixas de pizza. Algo correu pelo chão, subiu a parede e precipitou-se pela janela, um pequeno vulto, e ele imaginou se agora até os insetos o evitariam e o abandonariam. Agradeceu pelos insetos não digitarem e-mails, e chegou a cozinha, deparando-se com a pior parte do apartamento. Na pia, uma pilha de louça que clamava por limpeza, clamor este solenemente ignorado por ele. Caixas de comida congelada se espalhavam por cima dos talheres, garfos e copos que ali jaziam, e ele imaginou se deveria ou não acender a luz. Constatou que era melhor não.

Abriu a velha geladeira, e a lembrança novamente o assaltou, mas ele concentrou-se em seu objetivo: Mais gelo para seu uísque. Era tudo o que precisava. Retirou a cambuca de gelo, mas antes de fechar a porta do congelador, seu olhar percorreu o conteúdo das prateleiras. Maçãs passadas, leite vencido, duas garrafas de água pela metade, alguns condimentos estragados, e duas cervejas que ele comprara quando seus dias ainda possuíam algum colorido. Pegou uma delas, e bateu com força a porta do refrigerador antes de voltar para o quarto, tateando pelo apartamento deplorável.

Sentou-se em sua cadeira, e voltou a abrir o e-mail, pois encarar as duras palavras contidas nele era melhor do que ver aquele sorriso idiota estampado na própria cara que decorava a área de trabalho. Pegou a garrafa de uísque, derramou no copo até que este estivesse quase cheio (ou seria menos vazio?) e acrescentou duas pedras de gelo. Bebeu, e recolocando o copo sobre o móvel, empurrando o cinzeiro que transbordava guimbas, decidiu ler novamente. Talvez desta vez não doesse tanto.

Porém, uma voz (na verdade, Aquela voz) chamou seu nome, quase em um sussurro. Ia gritar, mas seu cérebro dominou seu instinto com a afirmação de que nada adiantaria clamar por socorro, já que ele não obteria nenhuma ajuda assim, e apenas se sentiria ainda mais ridículo. Então, limitou-se a girar lentamente a cadeira, enquanto um perfume (na verdade, Aquele perfume) invadia seus sentidos e o entorpecia. E ali estava ela, sentada em sua cama, com um sorriso estampado no rosto. Mas por algum motivo não era Aquele sorriso.

"Pronto, enlouqueci", pensou, enquanto encarava-a com o semblante impassível. Ficaram assim durante algum tempo, e então, como sua alucinação não desistia de atormentá-lo, desistiu ele, virando-se novamente para o computador. Selecionou algumas músicas, e deu play. Tornou a concentrar-se no texto a sua frente, mas o perfume ainda estava ali. Ouviu a respiração indignada, aquele leve suspirar que ela sempre dava antes de começar a brigar com ele, e ele sentiu a saudade arrebentar a represa que ele tentava em vão criar, e inundá-lo. Odiou-se, levou a mão ao copo e sorveu mais um gole de uísque.

- Vai mesmo continuar me ignorando?

Desta vez, o susto foi tamanho que ele derramou o uísque, amaldiçoando-se por isso. Virou-se, e ali estava ela, com sua tradicional saia preta de tecido leve que revelava as pernas que ele tanto admirava, sua camiseta preta colada ao corpo que revelava o busto generoso onde tantas vezes ele repousou, os cabelos negros emoldurando o rosto com as perfeitas imperfeições que ele admirara durante tantas noites insônes. E aquele rosto sorria para ele, e isso doía mais do que qualquer coisa poderia doer.

Lentamente, ela retirou as sandálias altas que usava, desafivelando-a uma a uma, ainda encarando-o, e estendeu ambas as pernas pela cama, olhando ao redor com um ar de reprovação. Ele percebeu que estava boquiaberto.

- Você está com aquela cara de idiota que eu consegui fotografar. Lembra?

Claro que ele lembrava. A foto tirada na praia, naquela viagem louca que eles fizeram.

- Quanto tempo você não arruma esta cama? Tá uma zona...
- Você está realmente aqui? Ou você é só uma alucinação provocada pela privação de sono e pelo excesso de álcool?

Ouviu sua voz e a desconheceu. Havia tempo que não falava coisa alguma.

- É claro que estou aqui! Onde mais estaria?
- Na sua casa. Vivendo a sua vida. Sem mim.
- Verdade, mas e você, consegue viver sem mim?
- Desde quando você se importa com isso?
- Desde sempre, idiota.
- Não, você não se importa.
- Me importo sim! E você está se destruindo. Por isso eu vim.

Ele balançou a cabeça, desacreditando do que estav acontecendo, e estendeu a mão, pegando um dos seus últimos cigarros, levando-o a boca, acendendo-o.

- É exatamente disso que estou falando. E você sabe que eu odeio cigarro.
- Tudo bem. Você não está aqui mesmo.
- Faz o seguinte? Apaga este cigarro, e senta aqui do meu lado. Vou te provar que estou aqui.

Ele apagou o cigarro, e cautelosamente, meio trêmulo, sentou-se ao lado dela. O perfume o atingiu, e ele não pôde evitar que as lágrimas brotassem.

- Calma... Calma...

A mão dela tocou a sua face, e ela o beijou gentilmente nos lábios. Depois o abraçou, colocando seu rosto contra os seios, e afagou os seus cabelos oleosos. Não sabe por quanto tempo ficou assim. Ela levantou-o, olhou-o nos olhos, e forçou-se a sorrir.

- Será que você não vê que eu estou aqui porque você me chamou? Não te abandonaria jamais!
- Mas você me abandonou!
- Não, eu não o abandonei. Nós apenas nos separamos. Foi isso.
- E não é a mesma coisa?
- Claro que não! Na verdade, acho que você não poderei abandoná-lo nunca, porque você simplesmente não vai deixar. Então, como tenho que ficar por aqui, vou começar dando um jeito em você.
- Han? Dando um jeito em mim?
- É. Você precisa arrumar esta casa. E precisa sair. E precisa rever seus amigos, eles o amam e sentem a sua falta. Precisa também conhecer gente nova, beber, viver a sua vida!
- Como é que é?! Você sempre foi contra isso tudo!!!! Você sempre reclamou dos meus amigos, você sempre detestava quando eu conhecia gente nova, e nem preciso te dizer que você simplesmente não confiava em mim!
- E mesmo assim, você não me esqueceu, e aqui estou eu.
- É. Mas... ainda não entendo.

Ele estava realmente confuso. Ou louco. Ou os dois. Ela o observava, sustentando um sorriso triste nos lábios. Passou as mãos pelos cabelos, e sentou-se com as pernas abertas, passando uma pelas costas dele e a outra por cima das suas pernas.

- Você não entendeu mesmo, não é? Você precisa sair desta fossa. Mas tudo isto foi provocado por mim, e eu me sinto na obrigação de ajudá-lo a sair desta. Antes que você faça alguma besteira.
- E quem é você, afinal de contas?

Perguntou ele, enquanto ela o puxava para si, beijando-o mais uma vez nos lábios. Ela não respondeu. Simplesmente o colocou na cama, deitando-o, e deitou-se junto a ele, beijando as lágrimas que ainda escorriam pelos seus olhos. Havia uma ternura que ele jamais vira no rosto dela, uma espécie de compreensão pelo que ele sentia que ela nunca demonstrara antes. Cobriu a ambos, enquanto o olhava nos olhos, e com o sorriso radiante que o fez se apaixonar, disse enquanto ele se deixava abater pelo sono que não vinha a dias.

- Eu sou a lembrança dela. Eu te fiz todo este mal. Mas você terá que conviver comigo, talvez pelo resto da sua vida, então deixe-me te ajudar. Eu tenho sido triste, mas quero que você faça de mim uma lembrança feliz...

Estas foram as últimas palavras que ele ouviu, antes de adormecer abraçado a sua lembrança.



Dedicado a todos que se lembram, mesmo sendo 'difícil viver carregando um cemitério na cabeça'.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Scoundrel Days

A vida de Sophia nunca fora uma maravilha, mas estava longe de ser o inferno que ela havia vivido nestas últimas 12 horas.
Encostada no balcão do pub, alheia a música alta, as pessoas que dançavam ao seu redor, aos gritos de homens comemorando alguma coisa na mesa próxima, as luzes que coloriam o ambiente, ela repassava cada um dos acontecimentos.

O dia havia começado bem, embora ela estivesse longe de casa e trabalhando. Participou de uma reunião com os gringos, para definir os valores do investimento total no novo negócio, e assim a sua comissão. Havia viajado na noite anterior, deixando Rodrigo, seu "namorido", sozinho em casa, coisa que ele sempre disse detestar. E havia se programado para chegar à noite, mas a reunião durou muito menos tempo do que ela esperava, e assim que terminou o almoço, estava indo para casa.

Mas a sua boa sorte havia terminado ali. Enquanto voltava, dirigindo seu sedã preto, passou por um imenso buraco na estrada que a obrigou a parar o carro, pois estourou seu pneu dianteiro. Debaixo de um calor de quarenta graus, no meio de uma auto-estrada, tentou em vão se entender com o macaco hidráulico, uma vez que seu telefone havia perdido completamente o sinal.
Para sua sorte, um jovem rapaz, ao vê-la, parou seu Jipe no acostamento e a ajudou. Bom, talvez fosse pedir muito que um homem não pedisse nada em troca após auxiliá-la, mas daí ao cara começar a dizer que finalmente a encontrara, e que ela era a pessoa escolhida havia uma grande diferença. Agradeceu, entregou a ele o seu cartão prometendo mentalmente a si mesma que iria trocar o número do celular, entrou no seu carro e seguiu sua viagem.

Ao chegar na cidade, parou seu carro por alguns instantes num sinal, e decidiu verificar se o seu telefone celular já estava funcionando. Péssima idéia. Dois pivetes, um deles armado, bateram em seu vidro, e com a arma apontada para ela, fizeram sinal para que ela entregasse a bolsa e o celular que segurava. Sem outra opção, sentindo-se completamente impotente e desamparada, com receio de ter uma morte banal, parada num sinal, entregou o que eles pediam. Um deles, ao vê-la após ela baixar vidro, fez menção de entrar no carro, mas o sinal abrira bem a tempo dela arrancar e dirigir o mais rápido que podia.

Ao estacionar o carro em seu prédio, ainda tremia, e por isso arranhou toda a lateral em uma das pilastras. Sentia-se um lixo, estava arrasada, mas o pior ainda estava por vir. Pegou as chaves e a carteira que sempre guardava no porta-luva, uma idéia que Rodrigo dera a ela e que na época ela achara idiota, mas que acabara acatando, e dirigiu-se ao elevador. Apertou o botão. Nada acontecera. Ouviu atônita enquanto seu porteiro lhe explicava que os elevadores estavam em manutenção, e que teria que subir até o sétimo andar pelas escadas. Tirou os sapatos de salto alto, e descalça, subiu todos os degraus, fazendo pequenas pausas entre os andares para tomar ar quando o fôlego lhe faltava.

Estava agora parada, em frente a sua porta, com a chave nas mãos, e os cabelos loiros a caírem sobre seu rosto cansado.
Pensou no quanto Rodrigo ficaria feliz por vê-la chegar antecipadamente, e imaginou-se nos braços dele, sentindo-se novamente segura, após todo este terrível dia. Não que fosse uma mulher frágil, longe disso, mas ele sempre passara a ela uma segurança que até então ela desconhecia.

Pôs a chave na fechadura e a girou, e escancarando-a, não pôde acreditar no que seus verdes olhos testemunhavam: Rodrigo copulava violentamente com uma mulher morena, em pleno sofá da sala. Ela estava de costas para ele, com os braços sobre o encosto, e os joelhos apoiados no assento, enquanto ele, atrás dela, apoiava uma das mãos em seus cabelos negros e a outra agarrava a sua cintura. Copulavam? Não, eles não copulavam. Estavam trepando. Pura e simplesmente.

Sem se dar ao trabalho de discutir, deu as costas para ambos, que pararam seu ato para observá-la; a mulher atônita, Rodrigo com a cara mais idiota que ela já vira um homem fazer. Não derramou lágrimas, não gritou, não esperneou, apenas se colocou a descer rapidamente todos os degraus que acabara de subir, e chegou à conclusão que enlouquecera. Ao passar pelo porteiro, este a olhou com pesar, e ela teve certeza absoluta que, se não enlouquecera antes, enlouqueceria em breve. Fez sinal para um táxi, no exato momento que Rodrigo aparecia, ainda sem camisa, no saguão do prédio. Entrou no táxi, sem mais olhar, e quando deu por si, estava sozinha num luxuoso quarto de hotel.

Espalhados pela cama, diversos vestidos e sapatos, ainda com a etiqueta das lojas, e diversas lingeries sensuais. Parado, com ar assustado, na porta do quarto, estava o pobre taxista que a acompanhara durante todo o caminho. Pegou duzentos reais na carteira e entregou ao homem, e antes que ele pudesse dizer algo, fechou a porta, indo diretamente para o banheiro, despindo-se pelo caminho.

Debaixo do chuveiro, enquanto a água quente fustigava as suas costas, permitiu-se derramar as primeiras lágrimas, que se transformaram em um choro convulsivo. Sentou-se no chão, e entregou-se aquele choro, pois ela precisava pôr para fora toda a angústia que sentia. Quando lhe faltaram as lágrimas, levantou-se, terminou o banho, e enrolou-se no roupão, enquanto usava a toalha para secar seus cabelos.

Mirou-se no grande espelho enquanto fazia isso, e, sem saber o porque, despiu-se de maneira sensual, observando seu próprio corpo. O rosto era belo e expressivo. Os olhos eram verdes, felinos. Os cabelos caíam de maneira sedosa por seus ombros, e ela os jogou para trás para examinar seus seios, perfeitamente redondos e de mamilos rosados. Sua pele era alva e sem nenhuma imperfeição, e sentindo-se estranhamente orgulhosa, e encabulada, colocou-se de costas, e observou, satisfeita, que nenhuma estria ou celulite a marcava.

"Tolo idiota. Perdeu a mulher mais foda que já teve", pensou, e assim, nua, começou a se maquiar, enquanto a tarde ia se transformando em noite. Pintou as unhas, escovou os cabelos, perfumou-se. Escolheu a menor e mais sensual das lingeries que comprara, e colocou um vestido preto de alcinhas colante que revelava cada curva de seu corpo. Pegou uma bolsa preta de festa que comprara, o cartão de crédito, algum dinheiro e o batom, e saiu, largando o quarto como estava.

O efeito foi imediato. Assim que saiu do elevador, no saguão do hotel, atraiu a atenção de quase todos os homens que ali se encontravam, e vingativa, ignorou a todos enquanto caminhava com a elegância digna de uma mulher sensual, que consegue ser provocante sem ser vulgar.

A noite estava quente. Não precisou rodar muito de táxi para encontrar um pub, que mais parecia uma boate. Desceu, pagou ao taxista, e sozinha, entrou. Pediu uma tequila, virou, e foi direto para pista de dança, onde tentou exorcizar os seus demônios. E agora, estava aqui, encostada neste maldito balcão, virando tequilas, amaldiçoando cada homem ao mesmo tempo em que desejava que pelo menos um deles a amasse de verdade.

E então, ele se aproximou. Usava uma blusa xadrez, de botões, calça jeans e bota. Não era bonito, sua barba estava por fazer, da mesma maneira que ela o vira na estrada, pela manhã, o que parecia ter sido um século atrás. Seus cabelos, já muito compridos para o gosto dela, estavam bagunçados, e ele passou a mão por eles, numa vã tentativa de ajeitá-los, antes de se dirigir a ela.

-Sophia, não é? - Perguntou ele, com um sorriso a brotar nos lábios. Ela reparou que embora não fosse bonito, possuía um certo charme. Mas lembrou-se da maneira que ele se comportara quando se encontraram, e evitou sorrir de volta, limitando-se a acenar afirmativamente com a cabeça, enquanto ele lhe estendia a mão.

- Matheus. Muito prazer - continuou ele - Não tive chance de me apresentar antes.

Ela deixou a mão descansar na mão dele, e o sorriso dele pareceu aumentar.

- Olha, eu já estou de saída, mas estou indo para uma festa perto daqui. Alguns amigos estarão lá. Gostaria de me acompanhar? Prometo que tem tequila...

Ela preparou-se para recusar, mas algo dentro dela rebelou-se. Sentiu uma grande vontade de gritar um "foda-se" para toda prudência que tivera até aqui. Estava arrasada, e a última coisa que queria era voltar para aquele quarto de hotel e encarar que havia sido traída pelo homem em quem ela depositara toda a sua confiança. Sorriu, e ele pareceu assustar-se com aquilo, e ela ouviu a sua própria voz murmurar um "Por que não?". Tinha certeza que ele também ouvira, pois os olhos dele brilharam de admiração quando ele jogou algumas notas sobre o balcão e a puxou pela mão para fora do pub, para longe daquela música, em direção a noite quente e estrelada.

Caminharam por algumas esquinas, em silêncio, até que pararam em frente a um prédio. Sua fachada era larga, o que sugeria apartamentos grandes, embora ele não fosse tão alto. Uns seis andares, talvez? Podia ouvir o som da música. Ele tocou um botão do interfone, e uma voz de mulher atendeu. Ele disse apenas o seu nome, e o portão abriu-se. Ele o empurrou, e deixou que ela passasse a sua frente, com uma mesura. Ela sorriu, e ambos foram sorrindo até a porta do elevador.

Entraram, e novamente, silêncio quase constrangedor. Ele a olhava, meio fascinado, e ela o olhava abertamente, esperando que ele tomasse alguma iniciativa. Mas nada aconteceu, e eles chegaram até o andar de destino.

Novamente, ele abriu a porta e permitiu que ela passasse. Assim que saiu, ela viu-se em uma imensa sala, ampla, com inúmeras pessoas circulando. A música dominava o ambiente, mas sem incomodar os outros sentidos. Seus olhos passearam pelas pessoas que dançavam, conversavam ou simplesmente seguravam um copo, apreciando a bebida. Pareciam todos ricos e bem sucedidos, e pertencentes a várias etnias. Definitivamente, era uma festa eclética. Sentiu uma mão segurar a sua, e sobressaltou-se, virando-se. Era Matheus.

- Divirta-se. Estarei por aqui...

E afastou-se dela, que se sentiu um pouco desnorteada, mas achou rápido o que queria: Um garçom. Pediu tequila. Virou. Foi para pista de dança. Curtiu a sensação de não ser observada. Outra tequila. Scoundrel Days tocava nos autofalantes, e ela cantou junto enquanto dançava e se deixava levar pela música. Mais uma tequila. A mente vazia, o corpo leve, toda a tensão sendo liberada pelos poros enquanto ela transpirava sem se preocupar com a sua maquiagem. Estava, definitivamente, bêbada.

Estava agora em uma sala, anexa ao salão principal, e conversava alegremente com algumas pessoas. Um deles era um homem pálido, com um olhar sombrio e ameaçador, roupas elegantes, e segurava uma taça com vinho. Próxima a ele, uma mulher de cabelos vermelhos, vestido dourado, decote generoso.

- Bom, Sophia, você compreende o que estamos fazendo aqui? - Perguntou Matheus, que estava ao seu lado, e olhava diretamente para o homem de terno. Havia alguma inimizade entre eles. Coisa de homens, sempre competitivos, pensou ela, enquanto voltava sua atenção para Matheus. - Você não está respondendo por você, mas por toda a sua espécie. A cada 100 anos, pessoas da minha espécie, da sua espécie e da espécie deles se encontram em uma festa como esta. Para rever o acordo. Nada pode ser feito sem a permissão de um de vocês, humanos, e hoje você foi à escolhida para responder pela humanidade. O que me diz?

Ela olhou para ele. Olhou para os outros e sorriu. Até onde entendera, alguns ali protegiam a humanidade. Outros, a caçavam. E os humanos aparentemente ignoravam isso, embora os que os caçassem afirmassem para os que os protegiam que o faziam sempre com o consentimento dos humanos. E parece que dependia dela que isto continuasse. Decidiu entrar de vez naquela brincadeira.

- Bom, - começou ela - Eu acredito que os humanos não mereçam proteção. É sério! Por exemplo... hic... Desculpe, eu bebi um pouco... Mas por exemplo, o que os humanos protegem? Para que servem? Seria bacana se tivesse alguém ameaçando toda a humanidade...- Ela gesticulava, cambaleando, indicando com os braços a dimensão da palavra 'toda'. - Nós teríamos que nos unir, não? Acho que se toda a humanidade tivesse um único inimigo em comum, nós nos veríamos como humanos e nos ajudaríamos... Não é? Por exemplo, não haveriam traições, e ninguém se sentiria sozinho, porque poderíamos contar e realmente confiar uns nos outros... Hic...

- NÃO! SOPHIA, VOCÊ NÃO PODE CONCORDAR COM ELES! - Gritou Matheus, mas o homem de terno apenas o olhou, e ele controlou-se. - Não cabe a eu escolher por você, Sophia. Prossiga...

Ela o olhou com alguma ternura e uma certa pena, e começou a rir daquele jogo. Bom, esta era a opinião dela. Se havia algo que a humanidade precisava, era de um predador, para caçá-los e lembrá-los o motivo pelo qual começaram a viver em sociedade. Pobre Matheus... Parecia desolado pelo fato, mas não se pode proteger a humanidade, porque a humanidade não protege a si mesma! Ele deveria saber disso. Ou não passava de um ingênuo.

- Bom, por mim ok! Quando começo a fugir e a ser perseguida? - Perguntou, segurando uma gargalhada, observando o casal ameaçador.

Entregaram a ela papel e caneta. Ela assinou sem ler. Daí pra frente, tudo ficou muito confuso... Matheus desapareceu da cena, e ela recorda-se vagamente de uma criatura parecida com um urso saltar na direção do homem de terno. Lembra-se da mulher mostrar presas e garras enormes para a criatura, e aí seu mundo girou, ela escorou-se na parede e começou a vomitar.

E agora estava parada na porta do seu hotel, vendo o Jipe de Matheus dobrar a esquina. Sentia-se horrível. Seu estomago estava embrulhado, sua cabeça doía, e ela provavelmente não lembraria de nada desta noite. Mas acima de tudo isso, ela sentia medo. E estava sozinha. Deu as costas para madrugada, indo para o seu quarto. Não podia mais evitar o amanhã.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Escolhas

O toque frio e úmido das pedras sob seus pés descalços, que normalmente a fariam arrepiar-se, passava despercebido pelos seus sentidos entorpecidos enquanto ela caminhava pelo corredor mal iluminado. O odor acre liberado pelas chamas, única fonte de luz do longo corredor, e o som das ondas explodindo em algum lugar acima também eram ignorados, tal qual a presença das duas figuras encapuzadas que a escoltavam e a guiavam por aquele verdadeiro labirinto subterrâneo.

Seus cabelos longos e escuros estavam molhados e salgados, o que provavelmente denunciaria de onde ela vinha. O longo vestido branco, naturalmente transparente, teimava em colar ao seu corpo enquanto caminhava, por estar também molhado, mas aparentemente nenhum dos seus acompanhantes parecia notar.

Enquanto caminhavam, um coro de vozes começara a ser ouvido, entoando algum tipo de canção religiosa em uma língua desconhecida, e a cada passo dado pelos três pelo longo corredor, este se tornava mais largo e o som mais forte. Um vento frio passou por eles, vindo da direção para onde seguiam, e trouxe consigo a lembrança de coisas desagradáveis, antigas e decadentes. E os que acompanhavam-na começaram a cantar.

Entravam agora em um imenso salão, também feito em pedra, onde aproximadamente cinquenta pessoas aguardavam por aquele momento. Estas pessoas estavam dispostas em um grande círculo, e no centro deste, uma escada que levava a um altar nas cores verde e salmão. Sobre o altar, jazia um corpo, mas a distância ainda não permitia definir muita coisa.

Enquanto ela caminhava em meio à multidão, a cantoria cessou, e eles a acompanhavam com os olhos, todos cobertos por seus capuzes esverdeados e puídos. Passo a passo, ela dirigia-se ao altar, alheia a tudo, seus verdes olhos inexpressivos, deixando pequenas poças de água salgada. Um trovão fez-se ouvir no momento em que ela alcançava o começo da escadaria, onde uma pequena mesa decorada com figuras desconhecidas sustentava um punhal com cabo de osso.

Ali, seus dois acompanhantes a fizeram parar, e um deles pegou o pequeno punhal, cortando a própria mão. Levou então a mão cortada à testa dela, tingindo de vermelho a pele alva do rosto perfeito. O sangue escorria pelo rosto, cobrindo também suas pálpebras, mas ela parecia não se importar. Ele entregou então o punhal a ela, e ambos colocaram-se de joelhos, enquanto ela tocava o primeiro degrau com os pés descalços. Sua visão tornara-se rubra e distorcida, e a cada passo, algo gritava desesperadamente dentro dela. Lembranças de algo muito antigo, que ocorrera há tempos distantes, longe deste templo, longe deste lugar, tentavam acordá-la. Mas era em vão. O que eram as suas memórias comparadas com os desejos dos antigos?

Alcançou o segundo degrau. Ela estava agarrada a ele, jovem demais, indefesa demais, e ele, também muito jovem, tentava protegê-la das chamas que rugiam ao seu redor e de algo muito mais perigoso.

Seus pés tocaram o terceiro degrau, e ela novamente em sua cama, debatendo-se em desespero, e acordou gritando, mas antes que pudesse começar a chorar ele passava pela porta de seu quarto, sentava-se na cama e a abraçava, protegendo-a.

No quarto degrau, ela estava em uma rua, à noite, voltando de alguma boate sozinha após as amigas a abandonarem. Uma mão, forte demais para que ela se soltasse, a agarrara e a puxara para dentro de um beco, e antes que ela gritasse uma outra mão tampava a sua boca. Sentia o mau cheiro dele, o fedor de álcool, e a excitação de encontro as suas penas desnudas. Lutou, debateu-se, mas um golpe em sua face a fez tontear, e ele se aproveitou disso para levantar a sua saia e esfregar sua ereção entre as coxas dela. Ela chorava de medo e desespero, mas pôde ouvir o som do vento deslocando-se, seguido do som de algo quebrando, e a pressão sobre ela diminuiu gradativamente, enquanto uma mão, agora protetora, a guiava para longe dali, para segurança do lar.

Quinto degrau. Estavam juntos, ao som de Smashing Pumpkings, dançando feito loucos no apartamento vazio que ela acabara de alugar. Seu primeiro apartamento, e seus únicos bens eram uma geladeira, um colchão, e um som superpotente, que ele dera de presente. E ela estava feliz, e via nos olhos dele sua própria felicidade estampada.

Sexto degrau. Seu último namorado a deixara, abandonando-a completamente. Ele a consolava, e enquanto ela chorava, ele dizia que ia vingá-la, que iria atrás dele, que quebraria seus joelhos, e a acalentava em seus braços.

Sétimo degrau. O último. A lembrança mais dolorosa. O sorriso dele, largo, abundante, iluminado. Bom. Simplesmente bom. O sorriso dele ao vê-la, ao falar com ela, ao contar uma piada ou falar sobre suas longas viagens. Sobre seus amores, sobre seus poucos amigos. O sorriso que iluminava toda a escuridão que sempre a cercou, que servia de farol em meio à tempestade que fôra a sua vida.

Tudo isto se resumia a nada, agora que ela dava os últimos passos que a separavam do altar onde o corpo dele encontrava-se desacordado, sobre inúmeras algas, lulas e outros invertebrados providos de tentáculos. Ela ergueu o punhal, com ambas as mãos, enquanto mirava sua face, ignorando a sua nudez. Os cantos recomeçaram. Um trovão dominou os céus. Suas mãos desceram violentamente, cravando o punhal no peito do homem ali deitado. Ela sacrificara o próprio irmão, e a humanidade estava condenada...

E ela gritava de dor, de tristeza e de remorso, sozinha em seu quarto, despertando de um terrível pesadelo. Transpirava, e seu suor umedecera toda a sua cama, apesar da janela estar aberta, e do vento úmido balançar incessantemente as cortinas. Olhou ao redor, ainda com lágrimas a escorrer pela face, e reconheceu todos os seus bichos de pelúcia. Olhou-se, no espelho colocado na parede oposta, e ainda tinha seus doze anos, e estava no seu quarto, na casa de seus tios. Nada tinha a temer.

Um relâmpago iluminou todo o quarto no momento em que ela colocava-se de pé para fechar a janela, e esta luminosidade revelou um homem sentado em sua cama. Ele estava de terno, e seus cabelos eram loiros e bem cortados. Os olhos amarelos a fitavam, e ele sorriu quando ela se sobressaltou.

"Acalme-se, criança", disse ele, e sua voz era misteriosamente envolvente. Ela acalmou-se, e para a sua surpresa, sentou-se na beirada da cama, observado o estranho. Ele prosseguiu: "As coisas não precisam ser do jeito que você viu. Há uma outra saída. Existe uma escolha. E eu estou aqui para dá-la a você..."

Neste momento, a porta do seu quarto se abriu, e como de costume, seu irmão aparecia, com o olhar preocupado, colocando-se ao lado dela e a abraçando.

O estranho desaparecera, abandonando-a com as suas dúvidas.

"Calma Sarah. Foi só um sonho ruim. Eu estou aqui", disse Arthur, seu irmão.

"E eu também, Sarah", ecoou uma voz envolvente que apenas ela podia ouvir.