quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Jovens e Antigos

As chamas consumiam tudo o que ele conquistara ao longo de sua vida com uma velocidade formidável. Parado, em pé, no meio da sua sala, ele observava a decoração ao seu redor ir derretendo vagarosamente, recordando-se das histórias que vivera ali. Das noites insones no sofá branco, de três lugares, que ele considerava mais confortável que sua própria cama. Do vento quente que invadia sua casa, no meio da madrugada, fazendo com que a cortina escarlate dançasse e trouxesse a sua memória as noites que passara com ela.

A Tv, eletrodoméstico favorito de seus filhos, e o menos apreciado por ele. A estante, de mogno, onde jaziam livros que um dia pertenceram a ela. O dvd, o rádio, a sua coleção de filmes, seu imenso acervo de cds, tudo estava sendo irremediavelmente destruído. E ele permanecia parado, alheio ao calor que as chamas emanavam, ao apelo silencioso de seu corpo, observando com total desapego. Seus olhos, marejados por lágrimas provocadas pela fumaça densa e negra que forrava o teto e que continuava a se expandir, concentraram-se em seus pés, descalços e alvos, e ele observou, de relance, que ainda segurava faca.

Tudo começou, e ele agora tinha certeza disso, depois que ela o deixara. Ele dedicara toda a sua vida a ela, e ela se fora, e ele não suportara isto, e a culpou. Mas mais do que isso, ele culpou a si mesmo. Acreditava não ter feito o suficiente para que ela ficasse, e com esta crença veio a depressão. Ele entregou-se prazerosamente a ela, abdicando de sua vida social, de seu trabalho, e até mesmo de seus filhos. Negligenciou por completo as suas responsabilidades, e por consequência disto, seu melhor amigo decidiu agir. Mais pelas crianças do que pelo afeto que ainda nutria por ele, uma vez que ele deixara de ser a pessoa que era.

Foi internado. Seu amigo ficou com a custódia temporária das crianças, e se ele pudesse escolher, se tivesse condições, teria feito esta opção. Seus irmãos estavam ocupados demais, vivendo suas próprias vidas, e não se opuseram. Seus pais eram falecidos, e nada poderiam ter feito. Então sobrara a Erick a responsabilidade de cuidar delas.

Recuperou-se do trauma em uma clínica psiquiátrica. Sonhava com ela todas as noites, mas em seus sonhos ela sempre aparecia como fôra em vida, e nunca como o cadáver desfigurado que ele foi obrigado a reconhecer (ou quase nunca). Nos sonhos, ela sempre estava com os cabelos negros soltos e perfumados, e seus olhos esmeraldas reluziam. Mas sua expressão o condenava. Ela o culpava pelo que acontecera, e ele sabia disso. Haviam discutido minutos antes dela sair de casa, magoada, chorando. Minutos antes do acidente.

Com a ajuda dos medicamentos e dos tratamentos administrados, os sonhos diminuíram em freqüência, mas aumentaram em intensidade e realismo. Agora, quando ele sonhava, podia ouvir a voz de Raquel. E ela continuava a acusá-lo, dizendo que o amava, e que por culpa dele estavam separados. Tentou o suicídio por duas vezes, mas em ambas foi socorrido pelos enfermeiros.

No final de seis meses os sonhos cessaram. Escreveu cartas para os antigos amigos e parentes, e cartas a Erick. Voltou a se interessar por seus filhos, e a cada informação obtida sobre eles, o remorso por ter sido um fraco o assolava, mas a lembrança do sorriso de Arthur, seu primogênito, e do olhar franco de Sarah, sua caçula, fazia com que ele recobrasse a força para lutar e o desejo de viver. Por fim, recebeu alta, e após algumas semanas, com a ajuda de amigos, conseguiu casa e emprego. E após um ano, estava novamente estabilizado, morando com seus filhos, perfeitamente são e feliz.

Três anos se passaram, e ele decidiu mudar de ares. Não por não gostar de sua cidade, ou por estar preocupado com a crescente onda de violência, mas porque os seus sonhos estavam retornando. Agora, ela sempre aparecia envolta em uma luminosidade esverdeada, fantasmagórica e sufocante. E não mais o acusava. Alertava-o. Dizia que as crianças seriam a sua ruína, que deveria se livrar delas. Que deveria matá-las. E depois sua fala tornava-se incompreensível, um misto de urros e gritos. Associou os sonhos ao fato de que, voltando a sua vida normal, com os mesmos amigos de sempre, estava perigosamente próximo ao seu passado. Era difícil passar pelos locais onde estivera com ela sem ser assaltado pela lembrança. Por isso, escolheu uma cidade litorânea. Ela detestava praias, e temia o mar.

Mudou-se, arrumou emprego, e foi bem sucedido. Com o dinheiro que acumulara com seu trabalho somado ao seguro que ela deixara, que ele até então não havia tido coragem de gastar, comprou uma ampla casa, mobiliou, e matriculou as crianças em uma ótima escola. A melhor da pequena cidade onde vivia. Sarah tinha agora seis anos de idade, e estava cruelmente parecida com a sua mãe. Suas expressões faciais e seus olhares sempre o faziam se lembrar dela, assim como seu jeito distante e sonhador. Arthur, com nove, tinha o sorriso sincero e cativante que encantaria todas as moças em breve, e era mais realista e mais forte do que ele jamais fôra em toda a sua vida. Era a miniatura de um grande homem.

Inicialmente, a mudança surtira efeito. Passou a caminhar na praia, a participar mais da vida das crianças, mas sempre que as observava dormindo, a voz de Raquel voltava a sua cabeça. E os sonhos retornaram.

Toda a aparente melhora que ele conseguira no primeiro mês desaparecera nas últimas semanas. Conseguiu uma licença do trabalho. Passava os dias trancado em seu quarto, pensando em Raquel e no quanto eles haviam sido felizes, e a noite ele caminhava na praia. E lembrou-se que discutiram por causa das crianças. Agora, tanto Sarah quanto Arthur eram ignorados por ele. Contratou uma empregada para cuidar das crianças e das tarefas domésticas, apenas para poder dormir e passar mais tempo com seu grande amor. Ela ainda aparecia envolta em sua luz esverdeada, e sua pele agora possuía um aspecto doentio, mas ele sentia que estava finalmente enchergando-a como ela era, em toda a sua beleza.

E então aconteceu. Ele estava dormindo, e usava apenas uma samba-canção azul. As janelas do seu quarto estavam abertas, e o luar o iluminava, conferindo uma aparência quimérica ao ambiente. E ela apareceu. Disse-lhe que era o seu último sonho, e que era chegada a hora dele agir. Era chegada a hora de assassinar as crianças. Ele observou-a calado. Ela irradiava sua aura esverdeada e doentia, sua pele estava escamosa e um cheiro de podridão a cercava. Insetos moviam-se pelo seu corpo, ora descendo por seus cabelos negros e sujos, ora aparecendo pelo decote do vestido de festa velho e pútrido que ela utilizava. E ele a achava deslumbrante.

Ele decidiu perguntar o motivo. Ela estendeu a mão pegajosa em sua direção, e ele a tocou.

Estavam em uma praia. Era e não era a mesma praia por onde ele caminhava a noite. O som do mar chocando-se contra a areia estava abafado, e a espuma que chegava aos seus pés era vermelha. Olhando ao redor, pôde ver peixes e aves mortos por toda a extensão de areia, e longe, sobre as águas, em pé, estava um casal nu. Ele concentrou-se neles, e sem dificuldade, os distinguiu. O Sorriso Cativante, e ao seu lado, o Olhar Sonhador. E atrás deles, imenso, colossal, inimaginável, erguia-se uma criatura. Ela vinha das profundezas dos oceanos, dos piores pesadelos, dos maiores temores. Ela era feita de puro desespero, e seu poder era tamanho que ele não pode desviar seus olhos, ou pensar, ou agir, ou sentir. Estava vazio. E a voz dela o preencheu: "Eles pertencem aos Antigos. Você deve matá-los. E eu vou ajudar".

Ele acordou suando e chorando, ainda com a visão aterradora em sua mente, e correu, em fúria, até o quarto das crianças. Escancarou a porta e saltou sobre as camas, gritando, as mãos curvadas como garras, mas atingiu apenas cobertas e travesseiros e bichos de pelúcia. Ergueu-se, seus negros cabelos caídos sobre o rosto magro e marcado, varrendo a escuridão com seus olhos insanos. Nada encontrou, e correu pelos aposentos, tropeçando na tomada do pequeno abajur do quarto das crianças, fazendo com que o mesmo caísse soltando faíscas. Talvez isso tenha começado o incêndio.

Em sua procura insana, passou pela cozinha, agarrando a maior faca que encontrara. As chamas começavam a destruir o quarto das crianças, podia ouvir o crepitar e sentir o cheiro de queimado. Caminhou, agora lentamente, em direção a sala, de onde vinha um fraco choro. Reconheceu a voz de sua filha, e sentiu o ódio crescer dentro dele. Exterminaria as crias daquela criatura, faria a sua parte, salvaria sua mulher. Destruiria os monstrinhos.

Entrou na sala, acompanhado das chamas, e os viu sentados no chão, encolhidos, Sarah com o rosto escondido contra o peito de Arthur, soluçando alto. Arthur estava com os braços ao redor dela, protegendo-a, mas com os olhos arregalados, e ele alimentou-se do pavor que viu no olhar de seu próprio filho. Olhou ao redor. Ele ainda segurava a faca.

A explosão foi intensa e iluminou toda a noite da pequena cidade. Casas ao redor foram atingidas, e os bombeiros tiveram que trabalhar arduamente durante toda a madrugada e o dia seguinte para resgatar as vítimas do incêndio que afetou todo o luxuoso condomínio.

Nos escombros, um homem foi encontrado morto, com uma faca cravada em seu peito.



Dedicado a Karine, por me incentivar, Renata, por compartilhar a fascinação por Lovecraft, a Andréa, por me ajudar, e ao Wallace, por me ensinar a ter medo dos Old Ones.

6 comentários:

  1. Alguns comentários me vêm a mente:
    Primeiro:
    Esse conto é bem sinestésico! A forma como você descreve os ambientes apela para os sentidos do leitor como se ele estivesse na prória cena. A gente consegue "ver" a cortina branca, sentir o calor das chamas, etc. Muito interessante!

    Segundo:
    Cheio de reviravoltas! Quando você pensa que começou a entender o que está acontecendo, o conto muda completamente de novo!

    Terceiro:
    Adorei!
    =D

    ResponderExcluir
  2. Uau bato palmas pra vc.
    ótimo conto, realmente.
    Já está melhor q o vasco de 2 contos 2 bons resultados, obrigado pela dedicatória (agora vou poder ter meu livro autografado?) e continue escrevendo.

    ResponderExcluir
  3. Assino embaixo do comentário da Monstrinha: Conto sinestésico e imprevisível. Parabéns!

    ResponderExcluir
  4. Nath e Heidi, obrigado pelos comentários, vocês são grandes amigas e ótimas escritoras. Elogios vindo de pessoas com o talento que vocês possuem sempre é bem vindo.

    E Wallace, que bom que gostou, seria muito complicado dedicar a você algo do qual você não gostasse!!! Pode deixar que daqui a trinta anos, quando eu for um escritor de verdade e lançar meu livro, você ganhará um autografado!

    ResponderExcluir
  5. Demorei mas apareci!! cara vc tá escrevendo super bem! parabens

    ResponderExcluir
  6. O que há mais para falar, acho que já falei o quanto descreve e escreve bem, de um jeito seu, com uma obscuridade sensível, cheio de inspirações mas autêntico... me vejo como se estivesse assistindo de cima todo o "mundo" que você cria...
    Esse conto em especial é de tirar o fôlego, digo isso de coração, é difícil uma leitura me prender e me surpreeender...você conseguiu!!!

    PS: Adorei ver meu nome nos seus agradecimentos, muito bom saber que tenho um pouquinho a ver com o fato de conmeçar a compartilhar o que escreve, eu também me beneficio disso, adoro ler! Se depender de mim terá incentivo sempre!!!

    ResponderExcluir