sábado, 29 de janeiro de 2011

O Viajante

Seus olhos abriram-se lentamente, enquanto uma mão insistente segurava seu ombro esquerdo e o chacoalhava. Sonolento, levou alguns segundos para recordar-se de onde estava, olhando meio pasmo ao seu redor. Sentiu suas costas doerem, e percebeu que se encontrava em uma posição desconfortável, enquanto olhava para o homem suado, baixo e sorridente, com uma camisa azul estufada na altura do ventre, que tocava seu ombro e o acordava. Era o motorista do ônibus.

- Hei, amigo, chegamos! Última parada!

Aquelas palavras ecoaram de maneira estranha para ele, que sorriu para o homem, agradecendo. Lançou um último olhar pela janela a sua direita, espreguiçando-se, e gostou do que viu. Estava em uma rodoviária pequena, onde seu ônibus era o único estacionado. Estava limpa, muito mais do que ele esperava que uma rodoviária de cidade pequena pudesse estar. Dali podia ver uma praça gramada e arborizada, com um pequeno coreto. Além do coreto, ainda na mesma praça, estava uma construção antiga, mas muitíssimo bem conservada, com suas paredes na cor salmão, e pilares romanos brancos em sua entrada.

Levantou-se. Estava com a boca seca, e acreditava que seus cabelos e todo o seu rosto estavam amarrotados. Passou a mão por eles, sentindo a oleosidade dos mesmos. Precisava de um banho. E de uma boa refeição. E com o intuito de providenciar ao menos uma destas coisas, colocou a sua mochila cargueira nas costas, e desceu do ônibus, desejando boa viagem e boa sorte para o motorista.

O sol estava extremamente luminoso, embora a temperatura estivesse agradável. Demorou-se, parado, enquanto seus olhos se acostumavam com a claridade, e caminhou em direção a praça, que ficava na calçada oposta. Rumou a passos largos, ouvindo o som de suas botas em contato com o chão da rua irregular, feita em paralelepípedos, misturar-se com a voz das crianças que brincavam na rua transversal a que ele atravessara, a sua direita. Caminhou pela grama verde da praça, em direção ao pequeno coreto, e percebeu que o olhar dos jovens casais, grupos de amigos e idosos era direcionado a ele. Sentiu um certo embaraço, pois apesar de sua aparente extroversão, era tímido. Principalmente quando se tratava de pessoas que ele não conhecia.

Enquanto olhava para as pessoas da praça, não percebeu a aproximação de uma garota, que agora andava ao seu lado. Estacou momentaneamente, olhando-a com ar incrédulo, tentando compreender o motivo dela estar acompanhando seus passos. Ela também parou, e olhou-o com uma expressão curiosa. E sorriu.

Ele percebeu que seus olhos eram de cores diferentes, o direito azul, e o esquerdo verde, mas achou prudente não fitá-los por muito tempo. Sua pele era branca, um pouco rosada devido ao sol. Seus cabelos tinham uma tonalidade avermelhada, mas ele não pôde precisar a cor, uma vez que em alguns locais era mais escuro, e em outros, mais claro. Mas tinha certeza de que eram curtos, e mal tocavam a nuca nas partes em que era mais longo. Ela era bem mais baixa que ele, que a olhava do alto dos seus 1,80m, embora ele tivesse a impressão de que ela poderia acabar com ele a qualquer momento. E usava roupas estranhas e incomuns. Um par de botas de cano alto, um short jeans curto, uma camiseta com listras verticais multicoloridas que o faziam lembrar do sinal de barras que apareciam na tv quando um canal saía de ar, e por cima disso, um paletó. Roxo.

Parecia que ela também o avaliava, mas com um sorriso no rosto. Quando pareceu satisfeita, falou com a voz mais estranha que ele já ouvira, embora não deixasse de ser uma voz bonita e poderosa.

- Você nem sabe onde está, não é mesmo?

Ele balançou a cabeça de um lado a outro, vagarosamente, indicando que ela estava certa.

- Sabe ao menos porque está aqui?

Ele novamente balançou a cabeça. Percebeu que estava de boca aberta, e tratou de fechá-la.

- Vem, me segue. Vou te apresentar a cidade, e providenciar para você um lugar para comer. E outro para tomar banho...

Disse, franzindo o nariz enquanto andava a sua frente.

- E não olhe para minha bunda, ok?

Acrescentou sem olhar para trás, mas ele sabia que era um aviso sério e que não deveria mesmo olhar. Sentiu-se idiota por estar seguindo aquela menina, mas algo dentro dele dizia que era exatamente isto que devia fazer. Caminhou por algumas ruas, e foi guiado para uma pequena pensão. No caminho, percebeu que as pessoas acenavam discretamente para ela, e o seguiam com o olhar. Depois, percebeu que o leve aceno era na verdade para ele, e que as pessoas o olhavam com um misto de curiosidade, admiração e medo. Estava tudo muito, muito estranho.

Dentro da pequena pensão, foi recebido pela proprietária, uma senhora com um vestido florido, um pouco acima do peso, que aparentava estar na casa dos 40 anos, e por mais duas meninas, com aparentemente 16, 17 anos, provavelmente funcionárias. Elas não olhavam para ele, e ele constatou que elas não eram atraentes. Tinham o jeito acanhado que a maioria das meninas do interior possuí, embora a de cabelos pretos já apresentasse curvas promissoras. A loira não passava de uma criança desenvolvida.

Foi prontamente atendido. Alugou um quarto, sem nem ao menos questionar o valor, e dirigiu-se para ele, que ficava no segundo andar, e enquanto subia as escadas, percebeu que a menina de olhos desiguais o acompanhava. Enquanto abria a porta questionava-se se ela realmente tinha a intenção de entrar, e sua pergunta foi respondida assim que ele terminou de abri-la, pois ela passou a sua frente e atirou-se na cama. Ele fechou a porta atrás de si, temeroso, e colocou a pesada mochila no chão, ainda encarando-a.

- Você não vai tomar banho? Sério, está realmente precisando...

Ele não se deu ao trabalho de responder. Pegou a sua mochila, e entrou no banheiro, trancando a porta ao passar por ela. Virou-se, e deu de frente com a sua imagem refletida no espelho. Sua barba estava por fazer. Seu rosto estava magro, e sua blusa preta estava empapada de suor. Seus cabelos negros, com muitos fios brancos, estavam oleosos e com aspecto sujo. Ele realmente precisava de um banho.

Livrou-se de suas roupas, atirando-as ao chão de qualquer jeito, e perguntou-se novamente o que estava fazendo ali. Sem conseguir achar uma resposta plausível, abriu o chuveiro, e deixou que a água levasse embora tanto a sujeira quanto as preocupações que o assolavam. Se era pra acontecer algo inesperado, que acontecesse. Não era a toa que ele estava com uma mochila, contendo todas as roupas que ele pôde carregar. Também não era por acaso que acordara em uma cidade que ele não conhecia, da qual ele sequer sabia o nome. Já que estava aqui, seguiria até o fim.

Saiu do banheiro sentindo-se renovado. Usava agora uma calça cargo preta, com muitos bolsos, e uma das suas inúmeras blusas pretas, e decidiu abrir mão de sua bota, calçando chinelos confortáveis que trazia em sua mochila. Ela ainda estava sobre a cama, e agora o olhava, parecendo satisfeita.

- Não vai fazer a barba?

Ele fez novamente que não com a cabeça. Não tinha coragem de falar, pois sua voz pareceria insignificante diante da dela, e porque as palavras eram desnecessárias até o momento. Ela sorriu, levantou-se, e encaminhou-se para porta.

Ao chegarem no andar térreo, onde ficavam as mesas para o restaurante, o cheiro de comida caseira dominou todos os seus sentidos. Seu estômago dominou os outros órgãos. Ele estava derrotadamente faminto, e parecendo adivinhar isto, sem que ele pedisse, a proprietária serviu-o. Ele devorava a sua comida, e apenas percebeu que sua companheira não comera nada quando terminou. Levantou-se, agradecendo a proprietária, e quando questionou sobre o valor, ela sorriu nervosa para ele, e com o olhar esperançoso, disse que era por conta da casa. Ele ia discutir, mas a menina dos cabelos curtos e avermelhados o pegou pelo braço e o fez segui-la, sob o olhar atento das funcionárias da pensão.

Ele caminhou com ela por diversos locais da pequena cidade. Na verdade, ele descobriu que não passava de um vilarejo, onde o principal meio de transporte era a bicicleta, onde carros eram raros, onde todas as pessoas se conheciam pelo nome. E ele foi apresentado a cada uma delas, enquanto andavam em direção a praça principal, aquela que ele vira pela janela do ônibus quando chegara. Atravessaram o gramado, e também o coreto, e rumaram para o prédio antigo, bem conservado, da cor salmão com pilastras brancas. Ao chegarem, ele percebeu que era muito mais alto do que ele imaginara, uma construção totalmente desproporcional a cidade na qual se encontrava. Embora ele pudesse ter três andares separados em seu interior, ao passar pelas portas duplas, ele saiu em um único salão redondo, iluminado por uma clarabóia no teto e por vitrais em suas paredes altas. Por toda a extensão das paredes, livros e mais livros. Ele estava em uma única e imensa biblioteca.

Olhou para trás, e viu que pelo menos metade da população da cidade estava do lado de fora, observando-o, enquanto ela o fazia avançar pelo salão. Seus passos ecoavam, enquanto os dela não faziam o menor ruído. Atravessaram inteiramente a biblioteca, em silêncio respeitoso, e saíram em um jardim, totalmente coberto por parreiras colocadas a cinco metros de altura. Cercas vivas serviam como paredes, e isolavam aquele recinto do mundo exterior. Estátuas de mármore estavam espalhadas por ali, e um pequeno riacho cortava paisagem, com uma ponte de madeira a atravessá-lo. E no meio de tudo isso, uma grande cadeira, quase um trono, e uma mesa, sobre o qual encontrava-se o maior livro que ele já vira. Ele estava aberto, e suas folhas estavam em branco. Ao lado do livro, um tinteiro.

Ele ficou de frente para ela ao chegarem à mesa, e antes que pudesse perguntar onde estavam, ela estendeu uma pena branca em sua direção. Ele hesitou.

- Meu irmão me pediu para trazê-lo até aqui, embora ele quisesse ter vindo, mas foi impedido por outros assuntos. Então, em nome dele, eu te pergunto: Gostarias de ser o Escritor de Sonhos?

Primeiro, ele achou que fosse algum tipo de brincadeira, mas percebeu imediatamente que não era. Então, foi assalto pelo pavor, e todo o seu corpo começou a tremer. Não, ele não queria ter esta responsabilidade, ele sequer era um escritor de verdade! Tentou gritar que ela estava errada, que ele não era a pessoa certa, que tudo era um grande engano, mas apenas balbuciou palavras sem sentido. Ela preocupou-se, e colocou ambas as mãos em seus ombros, enquanto dizia em tom tranqüilizador:

- Calma! Você não será o escritor de todos os Sonhos! Apenas responderá pelos sonhos dos moradores desta cidadela! Ou acha que meu irmão realmente colocaria você em um cargo acima de sua capacidade? Claro, com o passar dos anos, você provavelmente vai subir de posto, mas isso leva tempo, e até lá...

Ele não estava mais prestando atenção. Descobriu o que afligia as pessoas daquela cidade. Elas não sonhavam! Nenhuma delas possuía sonhos! Era por este motivo que todos o olhavam, e provavelmente era por isto que estava ali! Eles contavam com ele para aquela função!

Ela havia parado de falar, e o olhava. Ele pegou a pena de suas mãos. "Hei, amigo, chegamos! Última parada!" As palavras ecoaram em sua cabeça. Ele sentou-se na grande cadeira, e mergulhou a ponta da pena no tinteiro. Ela desapareceu em pleno ar, lançando para ele uma piscadela e um olhar insano. Lá fora, as pessoas se abraçavam, comovidas. Elas sonhariam esta noite.



Natalia Bemfeito, este conto é seu e apenas seu. Espero que aprecie o presente.

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Jovens e Antigos

As chamas consumiam tudo o que ele conquistara ao longo de sua vida com uma velocidade formidável. Parado, em pé, no meio da sua sala, ele observava a decoração ao seu redor ir derretendo vagarosamente, recordando-se das histórias que vivera ali. Das noites insones no sofá branco, de três lugares, que ele considerava mais confortável que sua própria cama. Do vento quente que invadia sua casa, no meio da madrugada, fazendo com que a cortina escarlate dançasse e trouxesse a sua memória as noites que passara com ela.

A Tv, eletrodoméstico favorito de seus filhos, e o menos apreciado por ele. A estante, de mogno, onde jaziam livros que um dia pertenceram a ela. O dvd, o rádio, a sua coleção de filmes, seu imenso acervo de cds, tudo estava sendo irremediavelmente destruído. E ele permanecia parado, alheio ao calor que as chamas emanavam, ao apelo silencioso de seu corpo, observando com total desapego. Seus olhos, marejados por lágrimas provocadas pela fumaça densa e negra que forrava o teto e que continuava a se expandir, concentraram-se em seus pés, descalços e alvos, e ele observou, de relance, que ainda segurava faca.

Tudo começou, e ele agora tinha certeza disso, depois que ela o deixara. Ele dedicara toda a sua vida a ela, e ela se fora, e ele não suportara isto, e a culpou. Mas mais do que isso, ele culpou a si mesmo. Acreditava não ter feito o suficiente para que ela ficasse, e com esta crença veio a depressão. Ele entregou-se prazerosamente a ela, abdicando de sua vida social, de seu trabalho, e até mesmo de seus filhos. Negligenciou por completo as suas responsabilidades, e por consequência disto, seu melhor amigo decidiu agir. Mais pelas crianças do que pelo afeto que ainda nutria por ele, uma vez que ele deixara de ser a pessoa que era.

Foi internado. Seu amigo ficou com a custódia temporária das crianças, e se ele pudesse escolher, se tivesse condições, teria feito esta opção. Seus irmãos estavam ocupados demais, vivendo suas próprias vidas, e não se opuseram. Seus pais eram falecidos, e nada poderiam ter feito. Então sobrara a Erick a responsabilidade de cuidar delas.

Recuperou-se do trauma em uma clínica psiquiátrica. Sonhava com ela todas as noites, mas em seus sonhos ela sempre aparecia como fôra em vida, e nunca como o cadáver desfigurado que ele foi obrigado a reconhecer (ou quase nunca). Nos sonhos, ela sempre estava com os cabelos negros soltos e perfumados, e seus olhos esmeraldas reluziam. Mas sua expressão o condenava. Ela o culpava pelo que acontecera, e ele sabia disso. Haviam discutido minutos antes dela sair de casa, magoada, chorando. Minutos antes do acidente.

Com a ajuda dos medicamentos e dos tratamentos administrados, os sonhos diminuíram em freqüência, mas aumentaram em intensidade e realismo. Agora, quando ele sonhava, podia ouvir a voz de Raquel. E ela continuava a acusá-lo, dizendo que o amava, e que por culpa dele estavam separados. Tentou o suicídio por duas vezes, mas em ambas foi socorrido pelos enfermeiros.

No final de seis meses os sonhos cessaram. Escreveu cartas para os antigos amigos e parentes, e cartas a Erick. Voltou a se interessar por seus filhos, e a cada informação obtida sobre eles, o remorso por ter sido um fraco o assolava, mas a lembrança do sorriso de Arthur, seu primogênito, e do olhar franco de Sarah, sua caçula, fazia com que ele recobrasse a força para lutar e o desejo de viver. Por fim, recebeu alta, e após algumas semanas, com a ajuda de amigos, conseguiu casa e emprego. E após um ano, estava novamente estabilizado, morando com seus filhos, perfeitamente são e feliz.

Três anos se passaram, e ele decidiu mudar de ares. Não por não gostar de sua cidade, ou por estar preocupado com a crescente onda de violência, mas porque os seus sonhos estavam retornando. Agora, ela sempre aparecia envolta em uma luminosidade esverdeada, fantasmagórica e sufocante. E não mais o acusava. Alertava-o. Dizia que as crianças seriam a sua ruína, que deveria se livrar delas. Que deveria matá-las. E depois sua fala tornava-se incompreensível, um misto de urros e gritos. Associou os sonhos ao fato de que, voltando a sua vida normal, com os mesmos amigos de sempre, estava perigosamente próximo ao seu passado. Era difícil passar pelos locais onde estivera com ela sem ser assaltado pela lembrança. Por isso, escolheu uma cidade litorânea. Ela detestava praias, e temia o mar.

Mudou-se, arrumou emprego, e foi bem sucedido. Com o dinheiro que acumulara com seu trabalho somado ao seguro que ela deixara, que ele até então não havia tido coragem de gastar, comprou uma ampla casa, mobiliou, e matriculou as crianças em uma ótima escola. A melhor da pequena cidade onde vivia. Sarah tinha agora seis anos de idade, e estava cruelmente parecida com a sua mãe. Suas expressões faciais e seus olhares sempre o faziam se lembrar dela, assim como seu jeito distante e sonhador. Arthur, com nove, tinha o sorriso sincero e cativante que encantaria todas as moças em breve, e era mais realista e mais forte do que ele jamais fôra em toda a sua vida. Era a miniatura de um grande homem.

Inicialmente, a mudança surtira efeito. Passou a caminhar na praia, a participar mais da vida das crianças, mas sempre que as observava dormindo, a voz de Raquel voltava a sua cabeça. E os sonhos retornaram.

Toda a aparente melhora que ele conseguira no primeiro mês desaparecera nas últimas semanas. Conseguiu uma licença do trabalho. Passava os dias trancado em seu quarto, pensando em Raquel e no quanto eles haviam sido felizes, e a noite ele caminhava na praia. E lembrou-se que discutiram por causa das crianças. Agora, tanto Sarah quanto Arthur eram ignorados por ele. Contratou uma empregada para cuidar das crianças e das tarefas domésticas, apenas para poder dormir e passar mais tempo com seu grande amor. Ela ainda aparecia envolta em sua luz esverdeada, e sua pele agora possuía um aspecto doentio, mas ele sentia que estava finalmente enchergando-a como ela era, em toda a sua beleza.

E então aconteceu. Ele estava dormindo, e usava apenas uma samba-canção azul. As janelas do seu quarto estavam abertas, e o luar o iluminava, conferindo uma aparência quimérica ao ambiente. E ela apareceu. Disse-lhe que era o seu último sonho, e que era chegada a hora dele agir. Era chegada a hora de assassinar as crianças. Ele observou-a calado. Ela irradiava sua aura esverdeada e doentia, sua pele estava escamosa e um cheiro de podridão a cercava. Insetos moviam-se pelo seu corpo, ora descendo por seus cabelos negros e sujos, ora aparecendo pelo decote do vestido de festa velho e pútrido que ela utilizava. E ele a achava deslumbrante.

Ele decidiu perguntar o motivo. Ela estendeu a mão pegajosa em sua direção, e ele a tocou.

Estavam em uma praia. Era e não era a mesma praia por onde ele caminhava a noite. O som do mar chocando-se contra a areia estava abafado, e a espuma que chegava aos seus pés era vermelha. Olhando ao redor, pôde ver peixes e aves mortos por toda a extensão de areia, e longe, sobre as águas, em pé, estava um casal nu. Ele concentrou-se neles, e sem dificuldade, os distinguiu. O Sorriso Cativante, e ao seu lado, o Olhar Sonhador. E atrás deles, imenso, colossal, inimaginável, erguia-se uma criatura. Ela vinha das profundezas dos oceanos, dos piores pesadelos, dos maiores temores. Ela era feita de puro desespero, e seu poder era tamanho que ele não pode desviar seus olhos, ou pensar, ou agir, ou sentir. Estava vazio. E a voz dela o preencheu: "Eles pertencem aos Antigos. Você deve matá-los. E eu vou ajudar".

Ele acordou suando e chorando, ainda com a visão aterradora em sua mente, e correu, em fúria, até o quarto das crianças. Escancarou a porta e saltou sobre as camas, gritando, as mãos curvadas como garras, mas atingiu apenas cobertas e travesseiros e bichos de pelúcia. Ergueu-se, seus negros cabelos caídos sobre o rosto magro e marcado, varrendo a escuridão com seus olhos insanos. Nada encontrou, e correu pelos aposentos, tropeçando na tomada do pequeno abajur do quarto das crianças, fazendo com que o mesmo caísse soltando faíscas. Talvez isso tenha começado o incêndio.

Em sua procura insana, passou pela cozinha, agarrando a maior faca que encontrara. As chamas começavam a destruir o quarto das crianças, podia ouvir o crepitar e sentir o cheiro de queimado. Caminhou, agora lentamente, em direção a sala, de onde vinha um fraco choro. Reconheceu a voz de sua filha, e sentiu o ódio crescer dentro dele. Exterminaria as crias daquela criatura, faria a sua parte, salvaria sua mulher. Destruiria os monstrinhos.

Entrou na sala, acompanhado das chamas, e os viu sentados no chão, encolhidos, Sarah com o rosto escondido contra o peito de Arthur, soluçando alto. Arthur estava com os braços ao redor dela, protegendo-a, mas com os olhos arregalados, e ele alimentou-se do pavor que viu no olhar de seu próprio filho. Olhou ao redor. Ele ainda segurava a faca.

A explosão foi intensa e iluminou toda a noite da pequena cidade. Casas ao redor foram atingidas, e os bombeiros tiveram que trabalhar arduamente durante toda a madrugada e o dia seguinte para resgatar as vítimas do incêndio que afetou todo o luxuoso condomínio.

Nos escombros, um homem foi encontrado morto, com uma faca cravada em seu peito.



Dedicado a Karine, por me incentivar, Renata, por compartilhar a fascinação por Lovecraft, a Andréa, por me ajudar, e ao Wallace, por me ensinar a ter medo dos Old Ones.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

O (re)começo de tudo

Seus jeans surrados, sua bota com solado gasto e sua blusa preta já desbotada revelavam que ele não era vaidoso. Talvez tivesse possuído alguma beleza durante a tenra idade, mas as feições já não eram harmoniosas. Seus olhos carregavam muitas visões para serem belos e seus cabelos, antes esvoaçantes e negros, estavam agora oleosos e esbranquiçados. Seus rosto era marcado, sua barba sempre estava por fazer, e seus sorriso, antes fácil, puro e luminoso, era agora cada vez mais raro, amarelado e menos sincero.

Parado, fixava os olhos no monitor a sua frente. Durante muito tempo, ele evitou fazer o que estava prestes a fazer. E ainda evitava, embora soubesse que deveria começar a qualquer momento. Seus dedos percorreram o teclado, iluminado apenas pela luz fraca que provinha da tela a sua frente, mas não se deteram neste. Um risco, uma faísca, um clarão repentino e uma chama. E então, a incandescência avermelhada de seu cigarro. O seu tão antigo vício.

Ele inspirou prazeirosamente, deixando que a fumaça preenchesse seus pulmões, e expirou lentamente, enquanto admirava o efeito que a luminosidade conferia a pequena névoa cinza que agora preenchia o espaço. Era fácil deixar-se levar por devaneios observando a bruma quase etérea que dançava diante de seus olhos, mas seu olhar atravessou-a, fixando novamente a tela branca. Vazia. "Um reflexo do que sou", pensou ele, e não pode deixar de sorrir, enquanto sua mão direita buscava a xícara de café já frio que descansava no móvel ao lado. Levou-a a boca, indiferente a sua temperatura, e engoliu o que restava de seu conteúdo. Seu rosto contorceu-se em uma careta, mas seus olhos ainda estavam presos, hipnotizados pela alvura que irradiava do monitor e iluminava-o na escuridão do quarto.

Ele já não se lembrava da última vez que fizera aquilo. Fora a muito, muito tempo, quando ele era jovem, irresponsável, imprudente, sincero. Quando ele era realmente poderoso. Quando ele ainda possuía a chama que dera origem a estas cinzas frias na qual ele se transformara. Enfim, quando ele ainda se sentia vivo.

Espreguiçou-se da melhor maneira que podia na cadeira desconfortável, e depois, um a um, estalou os dedos. Levantou-se, silenciosamente, e saiu do quarto. Ao retornar, estava leve e esperançoso, pois sempre que estava só e entrava em um aposento guardava a vã esperança de ver alguma mudança. Não saberia precisar, se perguntado, qual mudança seria esta. Mas nada acontecera, e ele, levemente decepcionado, sentou-se e procurou seu cigarro. Descobriu apenas cinzas, e instintivamente levou a mão ao maço, mas ao tocá-lo, sentiu repulsa e o soltou. Contemplou-o, depois ao isqueiro, e perguntou-se porque ainda fazia aquilo. Deu de ombros ao não encontrar resposta, e bocejou sonoramente, apenas para espantar o silencio que o acompanhava.

O sono, tão desejado por ele em determinadas noites, começara a rondá-lo, talvez por não ser conveniente ao momento. Ele esfregou os olhos com as costas da mão, e decidiu desistir. Sua mão direita foi de encontro ao mouse, e ele observou a seta mover-se na tela, indo em direção ao x dentro da caixa vermelha. Não ia começar hoje, e adiaria mais uma vez. Toda esta bobagem poderia esperar. Na verdade, ele nem mesmo sabia porque ainda estava ali sentado.

"Você não é o que quer ser, e nunca será", pensou, mas neste momento, tão súbito quanto um raio, ele foi atingido. Sua mente vagou por locais distantes, paisagens desconhecidas, pessoas e sorrisos que ele jamais vira. Sentimentos que nunca foram dele o apossaram, e ele curvou-se sobre o teclado, lançando um último olhar a tela ainda vazia. Sua respiração tornou-se mais forte, os olhos estreitaram-se.

E então, ele escreveu.